Opinião
O sufrágio tecnológico
Vivemos num tempo de fascínio tecnológico (isso é evidente em Portugal) e a própria Web Summit tornou-se uma espécie de dogma religioso nacional, com o que de bem e de mal tem isso.
Num conto fascinante, escrito em 1954, o autor de ficção científica Isaac Asimov situa-nos num já avançado século XXI. Nesse tempo as eleições realizam-se através de um supercomputador, o Multivac, que é capaz de ter em conta os desejos e os interesses de todos os habitantes do país. Ou seja, o Multivac elege o presidente e os deputados, e as grandes decisões políticas, sintetizando os desejos das pessoas. Para tomar estas decisões, o Multivac precisa da ajuda de um único ser humano, aquele que sendo a síntese desses desejos populares, é o único votante do sufrágio universal. Vivemos num tempo de fascínio tecnológico (isso é evidente em Portugal) e a própria Web Summit tornou-se uma espécie de dogma religioso nacional, com o que de bem e de mal tem isso. Numa era em que é evidente a tweetização do debate político, reconduzindo-o a frases fortes, a manipulação das redes sociais, a decadência da comunicação social, a fraqueza do poder dos Estados-nação contra a digitalização sem fronteiras (incluindo as dos meios de pagamento), e a necessidade cada vez menor da força de trabalho humano face aos robôs, o que Asimov nos atira à face é gritante. Nesta hegemonia tecnológica, que fazer? Estará a germinar uma rebelião contra esta tecnologia, como já se escuta por aí?
Num importante artigo no "The Observer", John Naughton, dizia que "precisamos de um Lutero do século XXI para desafiar a igreja da tecnologia". Tal como Lutero desafiou a Igreja Católica de Roma (com os efeitos que teve no próprio capitalismo), o investigador britânico diz que é preciso uma revolta contra a hipocrisia desta nova religião. Os seus alvos são claros. Como os que, numa outra vertente - como Margrete Vestager, comissária europeia - lutam contra a hegemonia que está a destruir a concorrência da Google ou do Facebook. A luta é contra este poder que está aqui e em nenhuma parte. Que sabe tudo sobre nós (os nossos movimentos, os desejos, os medos, os segredos, quem são os nossos amigos, ou o nosso poder financeiro). E assim acabam por definir os nossos desígnios políticos, a nossa moral, e as nossas irritações. E, no meio de tudo isso, dão-nos entretenimento, a forma de nos modelarem. É a "sociedade do espectáculo" de Guy Debord levada ao limite, através do nosso fascínio pelas tecnologias. Por isso basta ver-nos nos transportes ou às refeições a olhar para os smartphones em vez de falar ou de olhar para as outras pessoas. Isolados e agressivos, por detrás de uma pretensa sofisticação e informação deficiente.
A Internet que parecia ser a "última fronteira" da liberdade está a criar corporações hegemónicas que não obedecem a nenhumas regras e que vão alargando o seu poder a outras áreas (da alimentação ao transporte), sem deixar respirar qualquer alternativa. Naughton diz que a essência da oposição de Lutero a Roma teve a ver com a refutação da teologia e do "modelo de negócio" romano. Abrindo assim espaço para a revolução económica e comercial que determinou os séculos seguintes. Lutero não renegava a tecnologia: a impressão foi um elemento determinante na sua estratégia, porque permitiu popularizar o conhecimento da Bíblia e os seus próprios pensamentos. É a nova geração de gigantes empresariais e o seu poder infinito que começam a ser uma ameaça - ao Estado, à concorrência, às ideias frescas e à lógica de democracia e de sociabilidade. E é sobre ela que devemos reflectir.