Opinião
A independência e o protagonismo dos juízes
Essas primeiras páginas dos jornais e as indignações partilhadas nas redes sociais são a versão moderna da turba ululante, com tochas e forquilhas, pela qual nenhum de nós pretenderá ser julgado.
No "Espírito das Leis", Montesquieu defende um modo de julgar em que os magistrados são, de certa forma, anónimos. "Não temos continuamente os juízes diante dos olhos, e tememos a magistratura, e não os magistrados". É um bom princípio quando quem julga não tem legitimação democrática e portanto não existe esse mecanismo essencial da democracia que consiste em os eleitores poderem periodicamente livrar-se dos eleitos. Se pensamos que o juiz está lá para aplicar o direito definido democraticamente, pouco importando a pessoa do julgador, o sistema funciona. Se pelo contrário se instala a ideia de que a pessoa do julgador é tanto ou mais importante do que o conteúdo do direito, temos um problema.
Nunca me mereceram por isso simpatia nem a ideia de "super-juízes" nem o protagonismo mediático de alguns magistrados, precisamente porque induz a ideia de que os resultados da justiça dependem daquelas pessoas em concreto. Encaro mesmo como positivo o facto de alguns passarem para a política (como, recentemente, Moro no Brasil), porque aí nada obsta à vontade de protagonismo individual e existem mecanismos para confirmar ou terminar os seus mandatos. A questão não é que ex-juízes façam política enquanto políticos, a questão é que parece que já faziam política enquanto juízes.
Os mesmos mecanismos de mediatização que criaram juízes-heróis criaram também juízes-vilões, que se tornam protagonistas porque a sua decisão incorre na ira da sociedade. O ano passado tivemos o exemplo de um juiz da Relação do Porto, a propósito de um efetivamente lamentável acórdão cuja fundamentação revelava uma visão ultramontana - a ao arrepio da lei vigente - sobre o papel da mulher na sociedade. Essa indignação levantou o véu sobre a existência de juízes com esse tipo de preconceitos e sobre a ineficácia dos mecanismos de avaliação, colocou em discussão a necessidade de meios de tutela sobre decisões inconstitucionais - e chamou a atenção para a necessidade de os membros dos tribunais coletivos efetivamente lerem os acórdãos que assinam.
Um dos aspetos positivos da mediatização deste caso é que incidia sobre a fundamentação da decisão, que é a parte mais passível de ser discutida em abstrato. Não raramente vai contudo acontecer que a gritaria existe em torno da pessoa do magistrado, ou do sentido da decisão, ou da medida da pena. Num espaço público em que não é possível reproduzir toda a complexidade de um processo, o julgador junta-se ao autor no patíbulo. O risco é que o juiz seja condicionado pelo receio da reação negativa à decisão. A lei garante a independência do juiz contra muitas interferências externas, mas é impotente para o proteger do linchamento pela opinião pública.
Mesmo aqueles que consideramos culpados da prática de crimes graves têm direito às garantias de processo penal; a ser julgados apenas relativamente aos factos que tenham sido apurados da forma processualmente adequada; e a uma sentença que reflita o juízo da lei sobre esses factos, não as pressões que sofre o julgador. Aquilo a que assistimos nos últimos meses relativamente, por exemplo, ao juiz Ivo Rosa, a sucessão de notícias disparatadas em tom sensacionalista, parecem-se demasiado com uma tentativa de condicionamento em nome de uma qualquer "verdadeira justiça" que permitiria ignorar as regras que fazem com que a justiça funcione.
Essas primeiras páginas dos jornais e as indignações partilhadas nas redes sociais são a versão moderna da turba ululante, com tochas e forquilhas, pela qual nenhum de nós pretenderá ser julgado, e pela qual, se formos gente civilizada, também não pretenderemos que ninguém seja julgado. Se o receio de cair no desagrado da turba passar a condicionar as decisões individuais dos magistrados, pouco importará o que a lei diga - deixaremos de ter garantias, justiça, ou Estado de Direito.
Deputado do PS e professor de direito