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24 de Julho de 2019 às 19:42

A independência e o protagonismo dos juízes

Essas primeiras páginas dos jornais e as indignações partilhadas nas redes sociais são a versão moderna da turba ululante, com tochas e forquilhas, pela qual nenhum de nós pretenderá ser julgado.

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No "Espírito das Leis", Montesquieu defende um modo de julgar em que os magistrados são, de certa forma, anónimos. "Não temos continuamente os juízes diante dos olhos, e tememos a magistratura, e não os magistrados". É um bom princípio quando quem julga não tem legitimação democrática e portanto não existe esse mecanismo essencial da democracia que consiste em os eleitores poderem periodicamente livrar-se dos eleitos. Se pensamos que o juiz está lá para aplicar o direito definido democraticamente, pouco importando a pessoa do julgador, o sistema funciona. Se pelo contrário se instala a ideia de que a pessoa do julgador é tanto ou mais importante do que o conteúdo do direito, temos um problema.

 

Nunca me mereceram por isso simpatia nem a ideia de "super-juízes" nem o protagonismo mediático de alguns magistrados, precisamente porque induz a ideia de que os resultados da justiça dependem daquelas pessoas em concreto. Encaro mesmo como positivo o facto de alguns passarem para a política (como, recentemente, Moro no Brasil), porque aí nada obsta à vontade de protagonismo individual e existem mecanismos para confirmar ou terminar os seus mandatos. A questão não é que ex-juízes façam política enquanto políticos, a questão é que parece que já faziam política enquanto juízes.

 

Os mesmos mecanismos de mediatização que criaram juízes-heróis criaram também juízes-vilões, que se tornam protagonistas porque a sua decisão incorre na ira da sociedade. O ano passado tivemos o exemplo de um juiz da Relação do Porto, a propósito de um efetivamente lamentável acórdão cuja fundamentação revelava uma visão ultramontana - a ao arrepio da lei vigente - sobre o papel da mulher na sociedade. Essa indignação levantou o véu sobre a existência de juízes com esse tipo de preconceitos e sobre a ineficácia dos mecanismos de avaliação, colocou em discussão a necessidade de meios de tutela sobre decisões inconstitucionais - e chamou a atenção para a necessidade de os membros dos tribunais coletivos efetivamente lerem os acórdãos que assinam.

 

Um dos aspetos positivos da mediatização deste caso é que incidia sobre a fundamentação da decisão, que é a parte mais passível de ser discutida em abstrato. Não raramente vai contudo acontecer que a gritaria existe em torno da pessoa do magistrado, ou do sentido da decisão, ou da medida da pena. Num espaço público em que não é possível reproduzir toda a complexidade de um processo, o julgador junta-se ao autor no patíbulo. O risco é que o juiz seja condicionado pelo receio da reação negativa à decisão. A lei garante a independência do juiz contra muitas interferências externas, mas é impotente para o proteger do linchamento pela opinião pública.

 

Mesmo aqueles que consideramos culpados da prática de crimes graves têm direito às garantias de processo penal; a ser julgados apenas relativamente aos factos que tenham sido apurados da forma processualmente adequada; e a uma sentença que reflita o juízo da lei sobre esses factos, não as pressões que sofre o julgador. Aquilo a que assistimos nos últimos meses relativamente, por exemplo, ao juiz Ivo Rosa, a sucessão de notícias disparatadas em tom sensacionalista, parecem-se demasiado com uma tentativa de condicionamento em nome de uma qualquer "verdadeira justiça" que permitiria ignorar as regras que fazem com que a justiça funcione.

 

Essas primeiras páginas dos jornais e as indignações partilhadas nas redes sociais são a versão moderna da turba ululante, com tochas e forquilhas, pela qual nenhum de nós pretenderá ser julgado, e pela qual, se formos gente civilizada, também não pretenderemos que ninguém seja julgado. Se o receio de cair no desagrado da turba passar a condicionar as decisões individuais dos magistrados, pouco importará o que a lei diga - deixaremos de ter garantias, justiça, ou Estado de Direito.

 

Deputado do PS e professor de direito

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