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[776.] Adelaide e Aida

São hoje tão raros os anúncios em registo irónico que merece destaque o do vinho Adelaide, da Quinta do Vallado. Fez-me lembrar, não Adelaide, mas a minha velha conhecida Aida.

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O título, de tipo jornalístico, lança o mote: "Este ano não há Adelaide." Em publicidade, declarar que "não há" o produto à venda chama a atenção. A seguir vem a missão de criar interesse. Adelaide? O que é, quem é?

 

O texto cria suspense. O leitor deve embrenhar-se na longa mancha verbal - outra ousadia do reclame - para encontrar a explicação para o eclipse de Adelaide este ano. A primeira frase é "Mais uma vez.". Com ponto final, o texto parece falar apenas para os que já conhecem Adelaide, o que se confirma pelo estilo do período seguinte: "Para desalento dos seus apreciadores, que por este meio notificamos, foi decidido por dois votos contra e um voto a favor, que o tinto Adelaide de 2014 da Quinta da Vallado deverá permanecer mais um ano em cave." Entre o estilo de documento oficial - a "notificação" - e a informação rigorosa - dois votos contra um -, o texto introduz não só os "apreciadores" "desalentados" como o público em geral.

 

Segue-se um elogio sóbrio ao vinho deste ano, "de belíssima saúde", para logo se justificar a ausência de Adelaide: "Ainda assim, o tetraneto que votou contra está convencido de que o vinho poderá chegar um tudo-nada mais perto da perfeição se beneficiar de mais tempo." Tetraneto? O interesse mantém-se com a explicação incompleta. É preciso continuar a ler. Depois de informação adicional, que mantém o suspense na leitura da narrativa, sobre datas das decisões acerca de Adelaide, o leitor é finalmente informado que três tetranetos da "dita Adelaide", a famosa Dona Antónia, também Adelaide, devem decidir por unanimidade, e não sucedeu.

 

Esmiuçado o método de decisão e votação sobre o engarrafamento, o anúncio comenta-o: "É um processo anacrónico, nascido numa época de maior paciência e respeito pelo tempo, e de menor reverência aos deuses do mercado." Ironia plena: anacrónico, mas benéfico; os "deuses do mercado" mandam menos, mas ei-los a mandar fazer a "notificação" publicitária. O mercado merece um miminho numa frase construída sobre um paradoxo: "Adelaide pouca reverência presta ao moderno bom senso mercantil." O mercado é moderno e tem bom senso, Adelaide é que não se lhe coaduna.

 

Uma nova descrição do vinhedo e da sua diminuta produção faz crescer o desejo de compra. Nesta incursão na ficção realista, com a narração e a descrição alternadas, o desenlace esperado desanuvia a ironia dizendo que o anacronismo "dá belíssimos vinhos". Como é próprio das narrativas, o fim regressa ao princípio: dá bons vinhos, "embora não este ano. Este ano não há Adelaide." A frase final é a do título, como tantas vezes acontece em textos jornalísticos. A reiteração da ironia - informamos que este ano não há Adelaide - fecha o texto longo, invulgarmente bem construído, mantendo o interesse do princípio ao fim.

 

Falta, inevitavelmente, o apelo à acção, à compra. Como, se este ano não há Adelaide? A coda do texto, o desenlace, vem destacada no fim, com a indicação da "lista de espera" por inscrição no site. Afinal, este ano há Adelaide para reservar, portanto, agendar a compra! Há Adelaide! A austeridade do anúncio, embora mitigada pela leveza irónica do texto, é completada com três ilustrações a preto e branco, aqui sinónimos de classe e luxo: o brasão da casa Vallado, um copo de vinho desenhado "à antiga" e uma garrafa da marca, deitada, em pousio, apontando para o desenlace, a lista de espera.

 

Adelaide cumpre AIDA, um dos mais famosos princípios da publicidade, antigo mas nada anacrónico: Atenção, Interesse, Desejo (ou Decisão) e Acção.  

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