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[724.] Renault, Fiat

Alto e pára o baile! É preciso tempo para tentar compreender a prosa densa dum anúncio de Renault Talisman & Espace. São apenas 48 palavras, mas, caramba!, que profundeza, que sagacidade!

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O anúncio mostra dois exemplares da gama Premium "by" Renault, enunciados em título. A filosofia começa no subtítulo: "Se chegou aqui pelas suas próprias escolhas, porquê mudar?"

 

A frase pergunta-me se eu cheguei aqui pelas minhas próprias escolhas. Ora, burro como sou, não sei onde é o "aqui". Será por já ser cliente da Renault e destes dois modelos "by" Renault? É o que presumo, porque a frase diz que foi pelas minhas próprias escolhas. Confesso que a minha burrice me levou a julgar, à primeira leitura, se era ter chegado aqui, ao anúncio, pela minha escolha (comprar a publicação e virar as páginas), mas não pode ser, pois nesse caso os publicitários indicariam "porquê mudar de página?" Fiquei ciente de que o anúncio se destina a clientes Renault, convidando-os a não mudar de marca. Agradeço aos publicitários que confirmem.

 

O texto em baixo, de apenas 39 palavras, porém, não me esclareceu. Diz que "a nova gama Premium da Renault" - note-se que deixou de ser "by" Renault - "foi criada para quem segue os seus instintos e tem a coragem para fazer o que não é óbvio. Afinal, nada diz mais sobre si que as suas escolhas. Continue a ser autêntico."

 

Ora isto é impressionante. Respirei fundo. A primeira parte é comum: "Seguir os instintos" é uma maneira habitual de apelar à emoção, ao amor à primeira vista. Depois, a coisa complica-se: estes carros foram criados para quem "tem a coragem para fazer o que não é óbvio". Portanto, os clientes reincidentes nos modelos são lisonjeados com o encómio de corajosos. Corajosos porquê? Por fazerem "o que não é óbvio." Aqui voltei a sentir-me burro, porque a frase pressupõe que o "óbvio" é não voltar a comprar os carros da marca! Será possível? É o que está implícito: fazer o que é óbvio é não escolher estes modelos, fazer o que não é óbvio é ser corajoso e comprá-los.

 

O texto remata com filosofia de autoconhecimento. A última frase começa com um "afinal" tão típico no jornalismo actual. Há décadas , "afinal" queria dizer apenas "enfim", "finalmente". Mas evoluiu para um sentido mais complexo, que ainda não encontro registado em dicionários. No português mediático, "afinal" também quer agora dizer "de facto", "no fundo" (ou mesmo o popular "no fundo, no fundo"), pretende revelar alguma coisa que estaria escondida.

 

O texto do anúncio diz ao leitor que já tinha um Renault que, no fundo, sem ele mesmo saber, a reincidência na marca será corajosa, por ele ter fugido ao óbvio de escolher outra e que isso diz tudo sobre ele: "Nada diz mais sobre si que as suas escolhas." Somos o que compramos.

 

As 48 palavras são, assim, um tour de force para revelar ao já cliente Renault que ele é "ele mesmo", se distingue da manada atraída pelo "óbvio" (as marcas concorrentes), é "corajoso" e, mais, é "autêntico". A mensagem final do textinho - "continue a ser autêntico" - associa a autenticidade do indivíduo à fidelidade a uma marca.

 

Uf! Descodificar este texto é uma canseira. Proponho que seja analisado nas universidades, mas só ao nível de doutoramento, tal a dificuldade.

 

O anúncio do Fiat 124 Spider é mais para uma alma simples como a minha. Diz o título: "Recriado para fazer sonhar." Lá está, o lado emocional sempre presente na publicidade a carros. Este foi "recriado", não para se vender, mas para "fazer sonhar." Estou em pulgas por me ir deitar.

 

Em baixo, o texto diz que é "um descapotável intemporal". Eu poderia complicar, perguntando: se já era intemporal, para que o "recriaram"? Mas não vou por aí. Os produtos actualizam-se, é normal. Neste caso, os publicitários fizeram um esforço para não sublinhar que o modelo original tem mais de 50 anos (foi apresentado em 1966) e teve a sua produção interrompida durante décadas, período em que não foi "intemporal". Mas, de facto, "as novas linhas" do modelo são tão diferentes do original que "recriado" é a palavra certa. O passado transforma-se em aura, em mito, para "fazer sonhar". 

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