Opinião
[571.] Animais de Rua
A campanha publicitária da associação Animais de Rua utiliza uma retórica que só tem sido possível em anúncios de organizações não-governamentais em defesa de causas politicamente correctas: insulta, ameaça, aponta o dedo a quem abandona os seus animais domésticos antes de partir para férias no Verão.
Na publicidade puramente comercial, o recurso ao insulto ou ao menosprezo de alguém costuma dar maus resultados. Por exemplo, a campanha "eu é que não sou parvo", da Media Markt, motivou em 2008 protestos de quem se sentiu ofendido ao incluir-se entre os "parvos". E, no ambiente concorrencial de mercado, a campanha foi aproveitada pela Rádio Popular para uma contra-campanha dizendo que não insultava os clientes.
Na publicidade de causas, como a da campanha da Animais de Rua, não se corre esse risco. Nenhuma das pessoas que abandona animais domésticos - uma em cada 30, segundo a associação - virá ao espaço público protestar por lhe chamarem "grande besta, besta quadrada", "animal", "bocado de lancil onde as pessoas limpam o sapato", etc., como sucede nos cinco vídeos da campanha.
Os cinco reclames são pequenas ficções, muito semelhantes, protagonizadas por outros tantos actores. Em cada anúncio, um deles olha para a câmara e debita os insultos e o desprezo por alguém que abandona animais. Fica aqui como exemplo um dos textos, declamado no anúncio pela actriz Rita Blanco: "Olha, minha besta, sabes o que é que eu quero? Que tu fiques sem a tua casa, sem o teu carro, sem as tuas coisinhas, o teu dinheirinho, tudo o que tu gostas, que sejas atirado para uma estrada todo nu e que não tenhas nenhum sítio para onde voltar. Percebeste?"
Os textos representados pelos actores Manuel Marques e João Reis são os mais violentos. Em todos, o espectador visado pelo discurso é comparado a um animal, ao mesmo tempo que se procura colocar a pessoa que pensa abandonar o seu animal doméstico na mesmíssima situação do cão ou gato: abandonada, sem nada, na berma da estrada.
Basicamente, os anúncios exemplificam o preceito moral tão bem expresso no provérbio "não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". Tentam mostrar que o abandono representa para o animal o mesmo que representaria para essa pessoa se fosse lançada na beira do caminho. Invertem-se os lugares do abandonado e do abandonador. Os textos recorrem ao efeito retórico da analogia entre homem e animal, transferindo a essência de cada um por meio de antropomorfismo e zoomorfismo. Ao colocar-se o homem no lugar do animal doméstico, pode depois partir-se para a retórica da invectiva ou insulto, chamando-lhe "besta" ou "animal".
Os anúncios visam, assim, prevenir o abandono de animais domésticos através da criação do complexo de culpa, de caracterização moral negativa e de exclusão social. Dado que não atribui sólida formação moral a quem abandona animais domésticos que consigo viveram em casa durante meses ou anos, a campanha dá-se a si mesma a liberdade de insultar quem o fizer.
Para que não restem dúvidas de que os insultos são a sério, apesar da ficção, apesar de a campanha ser ainda preventiva, os anúncios pedem desculpa aos espectadores que não abandonam os seus animais, uma ficção do texto, dado que o objectivo é o de fazer com que, quem pensasse abandonar um animal, não o faça, sinta a culpa e evite a exclusão social, incluindo-se nos 29 em cada 30 que se portam bem - com os animais, ou como os animais.
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