Opinião
[569.] Citroën C4 Cactus
Toda a publicidade tem um dimensão ficcional, mas há casos em que a ficção não se esconde, antes se revela propositada e plenamente para impor uma ideia sobre a realidade do produto publicitado. É o caso da campanha do novo Citroën C4 Cactus.
Na sua versão longa, o vídeo apresenta cinco narrativas situadas ao longo da História: escravos remando numa galera romana em plena batalha naval; dois soldados medievais usando uma catapulta em ataque a um castelo; a coroação do rei numa catedral; dois astronautas explorando a superfície lunar; dois amigos numa rua citadina.
As cinco situações têm em comum uma pergunta dum dos protagonistas da cena ao outro. As perguntas são absurdas para o tempo histórico mostrado. Todas interrogam a respeito de características automóveis que supostamente não existiram até hoje, muito menos em tempos sem carros. A primeira pergunta, de um remador a outro na galera à beira de ser abalroada, serve para nos colocar no reino do absurdo: "Ouve lá, porque é que os motores dos carros são sempre tão potentes?" O soldado medieval já nos traz uma questão concreta sobre o modelo automóvel anunciado: "Sabes porque é que as portas dos carros são sempre tão mal protegidas?" O mesmo sucede com a pergunta da rainha ao marido já de joelhos para receber a coroa: "Querido, porque é que os tectos vidrados dos carros são tão mal isolados?" Na Lua, um astronauta, familiarizado com a técnica complicada, pergunta ao outro: "Diz-me lá, sabes porque é que os comandos de bordo dos carros são tão complicados?"
O desenlace ocorre na cena situada no tempo actual, porque o jovem nem precisa de acabar a pergunta ao amigo: "Mas porque é que os carros têm sempre... ?" A resposta surge-lhes à frente dos olhos, no Citroën estacionado na rua, que ficam a admirar sem palavras.
As situações criadas são engraçadas. O absurdo das perguntas no contexto das cenas chama a atenção e cativa o espectador para assistir até ao desenlace. O objectivo da sequência, na qual se gastou uma nota em actores, cenários, adereços e efeitos digitais, é revelado na parte final. Há perguntas que não fazem sentido numa ocasião, mas fazem noutra: "É preciso fazer as perguntas certas no momento certo". E o momento certo é o do desenlace: o novo modelo da Citroën, diz a frase final, "é o carro que responde às perguntas [ou questões] de hoje."
Com esta ficção em cinco episódios de alguns segundos cada um, o anúncio estabelece que havia perguntas que só hoje têm resposta com este carro. Se no passado eram absurdas, hoje correspondem a necessidades dos automobilistas. E, assim, o desenlace, apesar da preparação muito elaborada, devolve-nos duas das mais velhas regras da publicidade.
Primeira, a de criar no observador a consciência de necessidades de consumo em que ele nunca tinha pensa do, tão importantes que já poderiam ter sido imaginadas no passado. Segunda, a de fazer uma proposta única de venda (unique selling proposition), sublinhando características do carro que, a crer na publicidade, nenhum outro tem. A marca e os publicitários consideraram-nas suficientemente distintivas para investirem neste anúncio.
O reclame impõe as necessidades, através de perguntas, e dá as respostas, apresentando o C4 Cactus como o único modelo que a elas corresponde. Se fosse um anúncio de detergente, bastaria dizer "agora em nova embalagem com abertura fácil!", mas um automóvel é um produto caro, convida a mais sofisticação narrativa, mais elaboração técnica, mais investimento na produção. Foi preciso ir até ao Império Romano ou à Idade Média para inculcar no consumidor necessidades que este desconhecia ter e propor-lhe o único produto que, segundo o anúncio, as satisfaz.