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19 de Dezembro de 2017 às 20:45

"Queres mais arroz?"

Nada mais luxuoso hoje em dia do que aquilo que é prosaico, banal, quotidiano. Gentileza não se embrulha para presente. Simpatia não vem em caixas. Não há tolerância versão Plus ou X ou 2.0.

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Lembrei-me disto ao ver, na semana passada, uma entrevista recente da atriz brasileira Fernanda Montenegro.

 

Do alto dos seus 88 anos, perguntada sobre como era a sua relação com os netos, ela sorriu e disse: "É uma relação simples. Na base do "queres mais arroz?", "não esqueças do xarope para a tosse", "vais dormir aqui hoje?"

 

O entrevistador ficou visivelmente emocionado com o que ouviu. Afinal, a grande dama do teatro brasileiro, 70 anos de carreira, candidata ao Óscar em 1999, tinha prazer em ser, em casa, apenas uma doce velhinha.

 

Aquilo também tocou-me. E pareceu-me o ponto de partida ideal para uma crónica de fim de ano.

 

Em 2018, queria ser simples como é Dona Fernanda. Queria que fôssemos todos assim.

 

Queria que tivéssemos a sabedoria de não passar a vida a correr atrás das nossas próprias caudas (que não passam de metáforas fáceis para sucesso, fortuna, poder).

 

Queria que fôssemos mais supersticiosos, no sentido de acreditarmos mais em coisas como a lei do retorno ou karma, desde que isso nos obrigasse a pensar mil vezes antes de fazer nem que fosse uma única patifaria.

Queria que fôssemos mais bobos (não confundir com mais burros).

 

No seu belo texto, "Das Vantagens de Ser Bobo", Clarice Lispector escreveu: "O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou a fazer. Estou a pensar."

 

Deve ser por isso que no Natal é fácil ver sorrisos bobos nas caras dos outros. Só não sorriem livremente, bobamente, pelas ruas, alamedas e avenidas os que estão muito ocupados a serem respeitáveis.

 

Trata-se de gente que se leva muito a sério. Gente que exige reverência e salamaleques. São uns tristes. Mas merecem perdão. Eles não sabem o que vivem.

 

Amigos, aproveitem que um novo ano está para começar para pedir ao seu deus particular, além de saúde e amor, coisas bobas e corriqueiras.

 

Eu vou pedir que nos meus 88 anos tenha alguém ao meu lado a quem possa perguntar: "Queres mais arroz?"

 

Isso quererá dizer que valeu a pena ter chegado até ali.

 

Ou como diria o meu Tio Olavo, mais uma vez, a citar Clarice: "Só o amor faz o bobo".

  

Publicitário e Storyteller

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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