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12 de Maio de 2021 às 09:40

Para o seu Camões particular

Recuperado, hoje vive numa vila ao sul do Tejo. Mas o Poema sabe que Feliz nunca mais. Perdeu aquele seu ar de criança, que alguns chamavam pateta, mas que era apenas a opção de um esteta inábil com as palavras mas cheio de amor.

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“Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.” O tipo fica o ano inteiro a fazer apologias aos poetas e aos poemas e quando chega o Dia da Língua Portuguesa não diz uma palavra. Nem parece meu.

Pois é, a efeméride foi no 5 de maio e deixei passar como uma guarda-redes frangueira deixa passar a bola. Embrenhado que estou a escrever os mais variados projetos, esqueci-me de fazer a devida homenagem ao meu instrumento de trabalho, ao barro com que sujo as minhas mãos. E existe obra mais bonita da nossa língua do que os castelos literários construídos pelos nossos poetas?

Trata-se de uma pergunta retórica. A resposta é sim ou sim. Dentro de cada português, de cada brasileiro (e angolano, moçambicano e todos os povos lusófonos) há um Camões, um Drummond, um Ondjaki, um O’Neil, uma Cecília Meireles, uma Noémia de Sousa.

Destaco a poesia pois, não sendo poeta, posso admirar com a devida distância este género literário. É o que mais admiro (e o que mais temo; como diria o meu Tio Olavo: “O medo também é uma forma de respeito: é mais fácil ser ridículo a escrever poesias do que bulas de remédios”).

Há tempos, cometi um texto em homenagem aos poemas parvos, ao poemas românticos de bom coração. Era a saga de um poema risível e risonho e que dizia assim:

“O Poema Feliz era de amor. Que, é claro, rimava com a palavra flor. Como todos os poemas felizes, era estúpido, envergonhado, deserdado pelo próprio autor. Durante anos viveu escondido num caderno mas, como nenhum segredo é eterno, foi descoberto por um literato que tirou o Poema Feliz da sua aldeia e o levou para a cidade, com o objetivo confesso de exibi-lo numa grande feira.

O Poema Feliz não era inteligente, diria mesmo que, apesar do grande coração, tinha pouca cabeça. Confrontado com a súbita fama, reagiu de estranha maneira. Em pouco tempo podia ser visto acompanhado de críticos, artistas, intelectuais, políticos e rameiras. Comprou roupas de marca, passou todas as marcas, acreditou poder ser modelo, sem perceber que o que hoje é belo amanhã é feio.

Na boleia da fama, frequentava os bares da moda, dava entrevistas, aparecia na televisão, sem perceber que os seus novos amigos de borga, não eram amigos, não eram felizes, eram a sua perdição. O Poema Feliz, que fora um ingénuo, passou a beber demais, a fumar demais, a cheirar coca. Estava sempre trémulo pelo Bairro Alto à procura de drogas. Aos poucos o seu estilo mudou. Esqueceu-se que era um poema. Soberbo, imaginava-se prosa. E nem reparou quando a flor da sua poesia murchou.

Então, porque já não tinha piada, porque já não era um poema, porque já não era feliz, foi abandonado a troco de nada, a troco de um novo poema que abusava da letra “x” e, isso que era de mais, praticamente não tinha vogais. Daí para a prostituição foi um pulo. Vendeu as suas rimas para um trovador caolho e chulo. As metáforas, perdeu nas Docas de Alcântara numa rusga onde uma navalha cortou do seu corpo a palavra esperança.

O Poema agora era uma triste figura, dormia na rua a pensar, nas noites sem Lua, em praticar um haikai. Foi quando o Lar do Poema Abandonado o recolheu e ofereceu tratamento. Passado um tempo, o Poema era outro. Recuperado, hoje vive numa vila ao sul do Tejo. Mas o Poema sabe que Feliz nunca mais. Perdeu aquele seu ar de criança, que alguns chamavam pateta, mas que era apenas a opção de um esteta inábil com as palavras mas cheio de amor.

E quanto à sua flor, definitivamente morreu, nunca mais germinou.”

 

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