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30 de Outubro de 2015 às 10:06

Pequena memória de António Paulouro

Pela vida fora, o semanário do Fundão tornou-se numa grande referência profissional e moral da Imprensa portuguesa, e António Paulouro o seu grande mentor e inspirador.

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(Aos que resistem e continuam a acreditar)

Enquanto o País anda num virote de luta pelo poder, e eu batuco nas teclas, procurando dizer algumas verdades pessoais, a Câmara do Fundão vai lembrar e homenagear um grande jornalista, que toda a vida pelejou a favor da justiça das coisas, e pela grandeza do homem comum. António Paulouro, cujo centenário do nascimento passa a 7 de Novembro, está ligado à minha vida profissional e pessoal de forma marcante, e por isso o evoco com amizade, saudade e ternura.

Eu trabalhava n'O Século, tinha pouco mais de 20 anos, era azougado e inconveniente, escrevia n'O Século Ilustrado, semanário da empresa, uma coluna de cinema muito truculenta que me granjeara certa notoriedade, pois os textos constituíam mais uma tribuna política do que análises fílmicas. Muitos deles estão reunidos em dois livros, "O Cinema na Polémica do Tempo" e "O Filme e o Realismo", de que me orgulho muito. Certa noite, José Barão, algarvio, anarquista e grande repórter, chamou-me para me apresentar um amigo, António Paulouro, que fundara o semanário Jornal do Fundão e precisava de alguém que lhe escrevesse uma página de espectáculos. Eu. E assim foi. Paulouro era um homem sorridente e cordial, mas, percebia-se logo, decidido e extremamente enérgico. Fora adepto de Salazar, mas cedo se desiludira, e não escondia o que pensava, comportamento perigoso na época.

Assim que comecei a colaboração para o semanário, arranjei logo sarilhos. Um filme muito medíocre, de propaganda ao regime, "Rapsódia Portuguesa", realizado por um cineasta, João Mendes, abaixo de tudo o que se possa pensar, fora exibido em Cannes, e logo vituperado pela crítica e pelo público que o pateara com vigor. Eu recebia, de Paris, jornais e revistas de Esquerda, soube, mais tarde, enviados por Margarida Tengarrinha, com quem eu trabalhara, ela no Modas & Bordados eu n'O Século Ilustrado, e, com base nas notícias obtidas nessas publicações, desanquei o filme, denunciando os objectivos que lhe estavam subjacentes. Foi um alvoroço. Altos funcionários do SNI, o departamento de informação e propaganda do salazarismo, fizeram publicar, no semanário, diatribes violentíssimas contra mim, a que respondi agrestamente. A polémica terminou quando a censura o exigiu. E António Paulouro esteve sempre e sempre ao lado do seu jovem colaborador.

Pela vida fora, o semanário do Fundão tornou-se numa grande referência profissional e moral da Imprensa portuguesa, e António Paulouro o seu grande mentor e inspirador. Os maiores nomes da cultura escreveram no jornal, atribuindo às suas páginas um valor alternativo e extremamente importante. O & etc, de Vítor Silva Tavares, nasceu ali. E a revista Nova, de Herberto Helder, foi patrocinada por António Paulouro. Eu próprio, em hora de aperto, procurei acolhimento, em épocas diferentes, no semanário. O Honrado Paulouro, como chamei ao meu amigo, e do meu amigo escrevi, como agora, com emoção e orgulho, foi dos homens mais dignos e íntegros com quem convivi. Um jornalista como já não há, fervoroso adepto do pluralismo e da liberdade de espírito, e, além de tudo, o que não é pouco, um prosador de primeira água, veemente e de recorte clássico, grande leitor e devotado companheiro.

Quando morreu, seu sobrinho, Fernando Paulouro, substituiu-o no cargo e na função, dando continuidade, no talento e no carácter íntegro, ao extraordinário trabalho do tio. Voltei a escrever, no Jornal do Fundão, durante anos, e a convite do Fernando, uma crónica mensal, que não agradava aos novos administradores. Saí, porque o tempo e as pessoas são outros e defeituosos. O Fernando Paulouro saiu pouco depois, porque as circunstâncias assim o exigiram. É, ele como o tio, um dos grandes jornalistas portugueses. Escreve, agora, um blogue, "Notícias do Bloqueio", cuja leitura vivamente recomendo.

Vamos envelhecendo sem envilecer e isso nos basta. Deixemos a outros as tarefas das indignidades. Vamo-los zurzindo, mas eles não têm vergonha nenhuma. Os padrões são outros e a honra anda desempregada. Talvez, um dia, eles sejam escorraçados do nosso convívio. Talvez. Entretanto, ainda cá estamos, para o que der e vier. Assim seja.

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