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Indemnização por danos à concorrência

Foi publicada no Jornal Oficial da UE de 5 de dezembro a Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às ações de indemnização por infração às regras de concorrência da UE.

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Trata-se de um marco para a chamada "aplicação privada" do direito da concorrência que visa, através dos tribunais cíveis nacionais, facilitar a atribuição de indemnizações a vítimas de empresas que participem em cartéis ou abusem da sua posição dominante.

 

Tradicionalmente, a aplicação das regras de concorrência tem sido assegurada por autoridades administrativas (como a Autoridade da Concorrência) e assenta na aplicação de pesadas coimas às empresas infratoras que podem ascender a 10% do respetivo volume de negócios anual. A perspetiva pública foca-se na dissuasão e na punição mas, naturalmente, não pode compensar o sobrecusto que vítimas de um cartel tenham pago ao longo de anos, nem remediar os abusos que uma empresa tenha sofrido às mãos de um seu poderoso concorrente. A Diretiva, que os Estados-membros terão agora de transpor para o direito nacional no prazo de dois anos, procura incentivar o recurso aos tribunais por parte das vítimas na busca de uma indemnização.

 

Na verdade, a obtenção de uma compensação não depende desta Diretiva: já hoje é possível pedir a um tribunal uma indemnização por danos sofridos em resultado de um atropelo às regras de concorrência. Mas as dificuldades não são de somenos. Um cartel é secreto por natureza, pelo que a recolha de prova não se afigura fácil. Do mesmo modo, um abuso de posição dominante é frequentemente cometido através de práticas comerciais que só dissecadas numericamente revelam a infração: o problema é que os números evidenciadores se encontram a mais das vezes encerrados a sete chaves na sede da empresa infratora. A solução passa por utilizar em tribunal a prova que a Autoridade da Concorrência tenha recolhido na sua investigação. Mas chegada a este ponto, uma Autoridade da Concorrência tomba num estado de esquizofrenia dilemática.

 

Por um lado, vê as ações civis de indemnização como suas aliadas no esforço de dissuasão e punição dos infratores. Por outro, uma excessiva colaboração com as vítimas em termos de fornecimento de prova pode colocar em risco aquele que tem sido o instrumento mais eficaz a nível europeu e mesmo mundial (não sendo, porém, ainda infelizmente o caso em Portugal) no combate aos cartéis: os programas de clemência ("whistleblowers"). É que o perdão concedido à primeira empresa a confessar o delito tem-se revelado nos últimos anos o fator decisivo na descoberta e punição de grandes cartéis internacionais.

 

A Diretiva é uma boa notícia para o mundo da concorrência. Mas em Portugal há que saudar estas novidades "cum grano salis" e procurar refrear o frequente entusiasmo do legislador português pela última moda de Paris (neste caso, de Bruxelas). Somos por vezes acometidos de um novo-riquismo legal que procura importar tecnologia jurídica de ponta que falha porque singelamente falta papel, ou chove nos tribunais ou não há juízes… A obrigação de transposição da Diretiva deixa alguma margem de manobra ao legislador português nas alterações que se imporão ao Código Civil e ao Código de Processo Civil, pelo que seria avisado transpô-la com o sentido das proporções imposto pela realidade portuguesa.

 

É preciso ter noção de que o "private enforcement" das regras de concorrência surge ao nível da UE, e de jurisdições como o Reino Unido ou a Alemanha, como uma preocupação de quarta geração, depois de estar mecanizada (e bem oleada) a aplicação das regras contra os cartéis e os abusos de posição dominante, seguida pela implementação do controlo de concentrações e garantido o sucesso dos programas de clemência. Surge como a "nova fronteira" do direito da concorrência.

 

Em Portugal, estamos ainda a construir as fronteiras tradicionais. Em 2013, a Autoridade da Concorrência adotou, salvo erro, três decisões de condenação em matéria de práticas restritivas. Em 2014, mercê de uma profunda restruturação interna que procurou arrumar a casa, não houve decisões neste domínio. A expetativa é que em 2015 a Autoridade comece a ocupar o lugar ao lado das suas congéneres europeias de onde tem estado arredada nos últimos anos.

 

Trata-se, porém, ainda de uma chama débil que pode facilmente ser apagada por alguma nortada excessivamente entusiástica. A economia portuguesa necessita de uma Autoridade da Concorrência forte e de uma sólida aplicação pública das regras de concorrência que crie (e divulgue) um acervo de decisões a partir do qual seja realista começar a equacionar o "private enforcement".

 

O voto natalício que, a este propósito, se remete ao legislador português é o de uma transposição sensata da Diretiva, com o sentido de responsabilidade exigido pela nossa realidade e, desejavelmente, com uma ampla consulta pública que evite os desastres bem-intencionados dos génios de gabinete.

 

Sócio da Vieira de Almeida & Associados

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

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