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Há "dumping" no leite, mas nem tudo são más notícias

A realidade política e económica que se vive hoje na União Europeia revela uma dinâmica diferente daquela que esteve na origem da noção (e realização) de uma "união cada vez mais estreita".

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Esta realidade verifica-se nas diferenças entre o Sul e o Norte, nos benefícios que alguns países retiram com o euro, na facilidade de acesso ao crédito, na emissão de títulos de dívida, entre muitos outros exemplos. A nível de setores económicos específicos, cada país está a adotar abordagens individuais (e não europeias), no sentido de apoiar e desenvolver uma estratégia para a sua atividade de produção. O setor leiteiro é um exemplo desta ação desconcertada e fratricida, pois vale tudo na conquista desenfreada por novos mercados, emergentes, intracomunitários, globais: é o "ver quem se safa".

Por "tudo" entende-se um verdadeiro "dumping" nos preços do leite. Hoje não é rentável produzir leite indiferenciado a não ser que se vise uma rentabilização máxima de economias de escala, apenas possíveis para produção em "enormes" quantidades. É este o cenário atual na Europa: todos contra todos, num esforço de produção que afasta a qualidade e negligencia o pequeno e médio produtor, bem como o consumidor, em que a intensificação aparece como potenciador de baixos preços e competitividade afastando a salvaguarda pelo ambiente, bem-estar animal e a produção de produtos naturais e saudáveis.

Neste cenário, Portugal não consegue competir. Com efeito, desde o início dos anos 1990 que o país tem vindo a perder em média 3.070 produtores de leite por ano. Dos 80 mil existentes há 24 anos, restam menos de 6.000, dos quais cerca de metade residem nos Açores. Ora, esta estatística revela também que não temos capacidade natural para competir numa lógica de grandes economias de escala, a dos grandes produtores latifundiários, fisicamente impossíveis nos Açores.

É neste sentido que é necessário repensar a estratégia para o país. Até aos dias de hoje, a produção leiteira em Portugal tem alinhado na lógica de produção e de competição em termos de preço. Esta realidade foi protegida pelo sistema de quotas leiteiras e pelo consumo que estava previsto nas economias emergentes, que se afigurava crescente.

Ora, esta realidade desvaneceu-se com o fim do sistema de quotas e com a queda no consumo, que por sua vez se verificou nos mercados emergentes - o regime de sanções imposto à Rússia, o resfriamento do crescimento económico e da consolidação das classes médias destes países - e no resto da Europa. Hoje também se consome menos leite nas economias desenvolvidas. Desde 2014 que a procura mundial de leite decresce (menos 7% em 2015), apesar do fim das quotas leiteiras impostas pela Comissão Europeia em 2015. Ou seja, há uma redução da procura dos consumidores apesar da queda nos preços (menos 13% em 2015 devido ao aumento do leite no mercado), o que resultou numa situação séria de excesso de "stock" a nível europeu e mundial.       
   

Assim, é necessário orientar a produção para produtos que são mais valorizados pelo consumidor, que por sua vez privilegia cada vez mais qualidade em detrimento da quantidade. Este poderá ser um dos fatores que facilitaram a entrada no mercado de produtos substitutos. Com efeito, os produtores de lacticínios deverão apostar na inovação, seja na melhoria dos seus produtos ou na identificação de novos nichos de mercado. O que é certo é que não podemos continuar com o atual "status quo".

Felizmente nem tudo são más notícias. O leite dos Açores tem qualidades intrínsecas que lhe podem dar vantagem num mercado (o dos produtos lácteos) que deriva essencialmente do seu modo de produção – o do pastoreio. Enquanto todos os produtos que a indústria possa lançar são passíveis de serem copiados, ou são iguais a produtos que já se produzem em países com preços do leite mais baixos (que beneficiam das tais economias de escala), o modo de produção que é possível nos Açores baseia-se na pastagem. Este modelo de produção, baseado na qualidade, além de ter vários benefícios nutricionais em relação aos outros leites, sendo mais indicado para consumo, não é suscetível de ser copiado. É necessário ter as condições naturais – climáticas e de composição florística das pastagens - que existem nos Açores e que poucos países produtores de leite apresentam.

Deste modo, é necessário desenvolver políticas adequadas para a definição de uma estratégia de diferenciação que vise a criação de novos produtos, que incentive o modo de produção baseado na qualidade e que valoriza o modelo de produção possível nos Açores. Para isso é necessário que toda a fileira, incluindo o Governo e as suas políticas, traduza essa diferenciação, começando por uma redefinição do apoio aos produtores. Este deverá privilegiar o modo de produção (natural e saudável) e não a produção (litros). Está visto que se continuarmos a pensar e a agir como sempre, estaremos a importar todo o nosso leite de países que o produzem pior, mas mais barato. Hoje, a "união cada vez mais estreita" será apenas possível se cada país conseguir acrescentar valor. Nem tudo são más notícias.

 

Diretor de Aprovisionamento de Leite da Bel Portugal

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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