Opinião
Descarrilamentos ideológicos
O que têm em comum as anunciadas reversões das reestruturações dos sectores dos transportes públicos e do saneamento e abastecimento de água?
Resposta: 600 milhões de euros de dívida e de défice, respectivamente, que ficam por saber como serão resolvidos.
A restruturação do sector das águas consistiu na agregação dos 19 sistemas multimunicipais em cinco de maior dimensão, permitindo diminuir o número de conselhos de administração e reduzir as tarifas (mais altas) pagas no interior face às do litoral.
A reversão da restruturação prevê a cisão dos mesmos sistemas, com a criação de subsistemas de menor escala, de acordo com a reivindicação de alguns municípios. Assim, na região do Porto, está prevista a separação dos municípios do grande Porto das "Águas do Norte", "ressuscitando-se" no abastecimento de água as "Águas do Douro e Paiva" e no saneamento a "Simdouro". Na região de Lisboa está previsto um processo semelhante, com o "regresso" da "Sanest" e "Simtejo".
Onde antes apenas existiam cinco conselhos de administração em todo o país, passarão a existir tantos mais quantos os novos subsistemas criados. As áreas de suporte que foram reorganizadas de forma transversal às cinco empresas serão, de novo, engordadas. O défice tarifário histórico de 600 milhões de euros fica por saber como será resolvido.
Apresenta-se como principal razão para esta reversão a necessidade de valorização do papel das autarquias na exploração e gestão dos sistemas de saneamento e abastecimento de água.
Este processo está pois alicerçado em argumentos estritamente políticos, a saber, o reforço do poder e a satisfação da vontade de (alguns) municípios.
Pois bem, o Presidente da Câmara de Loures já veio dizer que, afinal, o Governo "falhou o compromisso com os municípios", acusando o Ministério do Ambiente de que "não só não reverteu a reestruturação do sector das águas como impôs uma solução sem ouvir as autarquias".
Já a reversão da reestruturação das empresas públicas de transportes de Lisboa desembocou na atribuição da titularidade administrativa do serviço público de transporte de passageiros da Carris ao Município de Lisboa.
Esta nova gestão municipal provocará a existência de três conselhos de administração distintos em vez de apenas um, comum à Carris, Metro e Transtejo. As áreas de suporte que foram reorganizadas de forma transversal às três empresas serão, de novo, engordadas. A dívida histórica de 600 milhões de euros fica por resolver no Estado.
À semelhança da reversão do sector das águas, também este processo se baseia nos mesmos argumentos estritamente políticos: reforço do poder e a satisfação da vontade de um município.
Sobre esta reversão, o Presidente da Câmara de Loures também já veio dizer que o Estado "está a fugir às responsabilidades, ao entregar a gestão da Carris à Câmara Municipal de Lisboa". Ora, uma gestão municipal não significa, necessariamente, uma gestão mais eficiente quando estão em causa serviços que extravasam os limites dos próprios municípios, que exigem uma visão supramunicipal, como é o caso dos transportes de uma área metropolitana ou do saneamento e abastecimento de água de uma região do país.
Dar a (alguns) municípios a gestão destes serviços pode satisfazer objectivos políticos mas não os de sustentabilidade, coesão social e promoção da eficiência e qualidade dos serviços públicos.
Perante isto, será que "o bom senso prevaleceu sobre o fanatismo ideológico"?
Advogado