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Concorrência em tempos de Covid-19? Um vírus, duas respostas

O coronavírus veio, a títulos vários, modificar e verdadeiramente "suspender" grande parte dos hábitos dos portugueses.

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Com ele, o tecido empresarial nacional vê-se agora perante um desafio que, se em termos de escala se pode equiparar àquele que as nossas empresas tiveram de ultrapassar durante e após a crise financeira de 2008, certamente ganha pela sua subitaneidade e pela forma repentina com que obriga os players nacionais (grandes, pequenos e micro) a algumas alterações de posicionamento.

Mudanças nos padrões de procura e de oferta, bem assim a provável seleção dos mais resilientes pelo próprio mercado alteram (talvez irreversivelmente) as dinâmicas concorrenciais e justificam ajustes que convertem o Direito da Concorrência - ou em sentido mais próprio, a posição que se adote quanto à sua aplicação - numa opção política que impacta, não só a capacidade de sobrevivência da economia e do tecido empresarial nacional, como ainda, o grau e a medida de satisfação dos interesses e das necessidades dos portugueses.

Opções como a fixação dos preços máximos (que, entre nós, se verificou com o gás de petróleo liquefeito engarrafado), ou a estipulação de limites percentuais de margens de lucro (nomeadamente na comercialização de dispositivos médicos e de equipamentos de proteção, bem como do álcool etílico e do gel desinfetante), representam um verdadeiro corretivo na lógica do normal funcionamento do mercado, à luz da qual os preços quedariam determinados pela conjugação oferta-procura. Uma opção justificada pela necessidade de combater a especulação de preços e garantir a disponibilidade de bens no mercado a "preços justos". Nada mais do que o Estado na sua função de superintendente, da qual se não pode demitir e que resulta, in casu, num cenário de "concorrência excecionada", em prol dos "consumidores".

Bastará? Não certamente. E assim é, porquanto não basta cuidar de (parte da) procura, para com isto se garantir que "tudo vai ficar bem", quando não vai. Respostas unidirecionais ou partidárias não são, pois, de admitir, sob pena de com elas se gerarem consequências irreversíveis num mercado que se pretende que venha (algum dia!) a regressar à normalidade. Há, por isso, e também, que cuidar da oferta, assegurando que destas eventuais exceções ao "normal funcionamento do mercado" ou à aplicação do Direito da Concorrência se conseguem retirar as devidas vantagens, sem a grande desvantagem de aniquilar a resiliência das empresas.

Ciente de que as empresas se defrontam hoje com desafios excecionais e extraordinários, e que serão elas, afinal, os principais atores da superação pós-crise, a Comissão Europeia reconheceu que a cooperação no setor da saúde (normalmente contrária à lógica de independência que perpassa o Direito da Concorrência) poderia revelar-se, não só pertinente, como uma verdadeira peça fundamental no sentido de assim se evitarem ou, pelo menos, mitigarem os efeitos da pandemia. Foi, nesse sentido, publicado um Quadro Temporário, que nada mais visa do que orientar as empresas quanto aos termos de uma eventual cooperação legítima com concorrentes – a garantia de um safe harbour do Direito da Concorrência.

Posição semelhante e até mais "generosa" do que esta foi a adotada um pouco por todo o globo, onde se assistiu à aprovação, em vários países, de medidas de flexibilização na aplicação do Direito da Concorrência, permitindo a empresas concorrentes dos vários setores no mercado (sobretudo, retalho, telecomunicações, transportes e banca) encetarem comportamentos e práticas cooperativas que, "em situação de normalidade", se veriam inviabilizados pela lógica de independência e autonomia que se entende dever presidir à atuação dos operadores económicos. Aspetos como a partilha de infraestruturas e de outros meios da logística comercial, ou a troca de informações entre instituições bancárias, para coordenação de moratórias e concessão de empréstimos, são apenas exemplos do alcance dessa lógica flexibilizadora.

Por aqui, e entre nós, a Autoridade da Concorrência, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e a Direção-Geral do Consumidor mantêm-se - nos domínios respetivos de atuação - atentas à adoção de práticas ilícitas pelos operadores económicos. Significa isto uma posição antagónica à observada nos demais pontos do globo? Resultará isto num cenário de "concorrência não excecionada", em detrimento das empresas? Talvez sim, talvez não. Tudo depende do que venha a resultar desse dever de vigilância. Se for o garantir que o Direito da Concorrência permanece atuante, onde deve atuar – repugnando práticas ilícitas, ao mesmo tempo que assegura que as legítimas não caem no mesmo saco, não vemos como se afigurem necessárias ou "de primeira necessidade" medidas no sentido do "levantamento do véu concorrencial". Na verdade, a adoção de diplomas avulsos nesta matéria poderia, se "confecionada à pressa", revelar-se, não só desnecessária, como geradora de alguma entropia no sistema.

A preocupação das Autoridades em assegurar os consumidores de que continuam desempenhando, de forma cabal, as respetivas missões é justificada, legítima e deve, aliás, ser a posição por si efetivamente adotada. As empresas, por sua vez, devem também recordar-se de que o estado de exceção não é (ao contrário do que por vezes possa parecer), um estado ajurídico.

Ora, nada mudando, do que precisamos é, pois, de uma boa dose de bom senso! Concentrando esforços no que a tal obriga, por exemplo, com um especial enfoque nos eventuais riscos de exploração abusiva de posições dominantes pelas big techs (talvez as únicas que se pode afirmar terem algo a "ganhar" com a crise). E desviando a carga e o fardo regulatório impendente sobre empresas cujos comportamentos visam, apenas e tão-só, garantir que os níveis e os "termos" da produção e da distribuição de bens e de serviços no mercado seguem dando resposta às enormes e significativas flutuações da procura e da oferta.

Excecionar ou não excecionar o Direito da Concorrência, eis a questão. Questão para a qual a resposta não poderá talvez ser outra, que não a das duas opções em alternativa. Um vírus, duas respostas, portanto.

Docente na Faculdade de Direito da Universidade do Porto

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