Opinião
Chegou o tempo dos chacais
Numa entrevista a Ana Sá Lopes, no jornal «I», Mário Soares disse que António José Seguro «o desiludira.» Este, numa resposta em que o desdém era apadrinhado pelo paternalismo palerma, afirmou que sentia por Soares «carinho» e «ternura.»
Numa entrevista a Ana Sá Lopes, no jornal «I», Mário Soares disse que António José Seguro «o desiludira.» Este, numa resposta em que o desdém era apadrinhado pelo paternalismo palerma, afirmou que sentia por Soares «carinho» e «ternura.» Afinal, Soares confirmou o que se sabe, no PS e fora do PS e, ao reafirmá-lo, fê-lo com a sabedoria e o conhecimento de causa que faz dele o que Manuel Alegre designou (ao lado de Cunhal) por um dos dois últimos leopardos da política portuguesa. E Alegre acrescentou: «Agora, é o tempo dos chacais.»
Seguro não é o homem exacto para o momento dilemático em que vivemos. Desprovido de convicções, pouco culto, não possui estatura de estadista nem fibra para enfrentar a complexidade da situação actual. Mas ele é o reflexo actual do PS: sem grandeza nem estilo, sem leitura e sem desígnio a não ser o atabalhoado desejo de poder. Tony Judt, num livro a vários títulos extremamente estimulante, «Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos» [Edições 70, que tem publicado grande parte da obra deste autor], analisa o vazio ideológico da social-democracia, as suas debilidades éticas e as suas traições. Sem esquecer a quase total ausência de textos ideológicos.
Com a ascensão de Tony Blair a primeiro-ministro no Reino Unido, e a proclamada «terceira via», o «socialismo moderno» adquiriu um fôlego tão inesperado como patético. Recordo-me do entusiasmo delirante de António Guterres, cujas ideias também se respaldavam em… Bill Clinton, vejam só…, na paixão dele pela educação, e na fuga precipitada do «pântano» para o comovente lugar de comissário qualquer coisa dos refugiados. O meu saudoso amigo Fernando Lopes dizia que o «socialismo tinha chegado à pia de água benta», e chamava de beato António ao então primeiro-ministro.
Todas estas tropelias, embaraços e curvas apertadas formaram o PS que, notoriamente, deve ter muita força para aguentar com tanto. Votei uma vez no partido, exactamente no tempo de Guterres, atraído pela melodia do que ele dissera sobre educação. E tenho, entre os meus grandes amigos, militantes e dirigentes socialistas, alguns há mais de quarenta anos, como é o caso de João Soares.
Critiquei, por vezes duramente, José Sócrates. Apesar de tudo, o seu consulado possuía um objectivo e uma consistência que este Executivo de Passos Coelho está longe de alcançar. Passos trepou ao poder por um equívoco, e alicerçado em pequenos embustes e promessas que o tempo provou serem altamente perigosas. O poder pelo poder é algo que desprezo, pelo que comporta de malefício colectivo e pelas características de improviso que envolve. Durante este tempo todo, António José Seguro tirocinou na Jota, não se sabe em que trabalhou, e foi eurodeputado. Ganhou a vidinha, com reforma assegurada, e chamam-lhe «doutor». Enquanto o PS de Sócrates enfrentava as mais ferozes críticas de que há memória, Seguro estava de tocaia, aguardando, em silêncio cavo, uma oportunidade. Não tomou posição nem por um nem por outro. Caladinho que nem um rato, sabendo que o tempo corria a seu favor.
Antes, dissera, numa comentadíssima entrevista ao «Expresso», estar cansado da política e disponível para ir para o Parlamento Europeu. Move-se com movimentos estudados e ar grave. O grande jornalista Ricardo Ornellas dizia que, quem assim se exibe, é, somente, para impressionar os contínuos.
A subida de Seguro ao mais alto lugar do PS deve-se à desistência de outros, à negligência de alguns e à indiferença de muitos. Mas resulta de uma espera, cautelosa e paciente, minuciosa e astuta, deste homem de qualidades duvidosas e de «socialismo» imperceptível. O desconforto que se vive, no interior do partido, é semelhante à preocupação dos portugueses, com a possibilidade de Seguro chegar a primeiro-ministro. Mário Soares acreditou, inicialmente, neste homem que conhecia de rapaz, e agradava-lhe o tom cerimonioso e a educada reverência com que se lhe dirigia. Depois, o PS não dispunha de mais ninguém, logo que António Costa não estava inclinado a dirigir o partido. A crise era, e é, mais grave e aparentemente insolúvel do que se presume e presumia.
Chegámos a esta situação deplorável. Um vazio político que o PS não preenche porque não suscita credibilidade a ninguém, e um Governo de coligação PSD-CDS moribundo, sem hipóteses dse futuro, que arrasta Portugal e os portugueses para uma miséria irreparável.
Marcelo Rebelo de Sousa, com a graciosidade que se lhe reconhece, disse que «a quarta idade» de Soares não lhe obnubilara a intuição política. A deselegância está à vista, mas com um lado de verdade que se lhe não nega. Ao afirmar, a Ana Sá Lopes, que António José Seguro o desiludira, Mário Soares deu imagem e voz ao nosso comum desalento.
b.bastos@netcabo.pt