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Carta aberta ao governador do Banco de Portugal

A Thomas Cook faliu por inúmeras causas, internas e externas. Não se inclui nestas o facto de já ninguém entrar numa agência de viagens para comprar umas férias.

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Produziu V. Ex.ª considerações, julgamos que enquanto governador do Banco de Portugal, no seminário "Qualidade de Gestão, Governação e Produtividade da Economia", segundo as quais a falência do grupo Thomas Cook representa o "sucesso das plataformas digitais", acrescentando que "ninguém vai hoje a uma agência de viagens a não ser que tenha um serviço adicional". Soube acrescentar ainda que, "hoje, quem trabalha com agências é sobretudo o corporate".

 

Que V. Ex.ª seja convidado para um seminário sobre qualidade de gestão, depois do desempenho que se lhe conhece na regulação bancária (já agora, será que a falência dos inúmeros bancos ocorrida em Portugal, e no mundo, significa que, hoje, já ninguém vai a um banco?), será uma opção legítima de quem o convidou. Que se permita tecer comentários absolutamente inaceitáveis sobre um sector, o das agências de viagens, presume-se que enquanto governador do Banco de Portugal, já nos parece uma aberração sem qualquer sentido ou justificação.

 

Percebendo que faltará a V. Ex.ª conhecimento, ainda que rudimentar, do sector a que se referiu, permitimo-nos sublinhar os seguintes aspectos:

 

1. Falências, sobretudo de um grande grupo internacional (lembramo-nos de nomes de alguns maiores que a Thomas Cook, ligados ao sector bancário…), são expressão relativamente comum da recente globalização económica e alteração das bases do negócio.

 

Naturalmente, quando ocorrem, não significa que os respectivos sectores estejam acabados, apenas expressam o natural funcionamento da economia de mercado.

 

Tentando ser mais objectivos, em dois anos, faliram trinta e seis companhias aéreas. Significa isto que estamos no limiar de… deixarmos de poder levantar voo? Ainda recentemente, abriu falência a importante plataforma digital, a Amoma, indo fazer companhia a tantas outras que, entretanto, desapareceram, como é o caso da Terminal A, de tão má memória no mercado português. Antevê também, por causa disso, o terminus das plataformas digitais? Quiçá o fim das viagens? Do mundo?

 

2. A Thomas Cook faliu por inúmeras causas, internas e externas. Não se inclui nestas o facto de já ninguém entrar numa agência de viagens para comprar umas férias.

 

Desde logo porque as agências de viagens, para vender lazer, não precisam que os clientes lhes entrem pela porta dentro, por incrível e estranho que possa parecer a V. Ex.ª. Sim, as agências de viagens são um dos principais utilizadores de tecnologia e, sim, também vendem de forma digital.

 

Difícil será conceber que um grupo que, no final do Verão, deixa desamparados seiscentos mil clientes por todo o mundo, se possa queixar de… falta de clientes!...

 

3.O sector das agências de viagens, em Portugal, está bem e recomenda-se, tendo sido objecto, recentemente, de um minucioso estudo por uma equipa liderada pelo reputado economista, Professor Augusto Mateus (está editado um livro, que teremos todo o gosto em oferecer-lhe).

 

Se fizer o favor de lhe dar alguma atenção, poderá concluir que o sector das agências de viagens, em Portugal:

 

i) É constituído por empresas de maior dimensão, em número de trabalhadores, do que a média da economia nacional e do sector do turismo;

 

ii) É capaz de atrair novas empresas, a um ritmo superior ao da média nacional e do sector do turismo;

 

iii) Cresceu, no período 2012-2016 (a que se refere o estudo), a uma média anual de 4,3% (tomara a economia portuguesa… com toda a certeza, tomara o sector bancário…);

 

iv) Considerando os efeitos directos, indirectos e induzidos, o VAB do sector foi, em 2016, de 3.240 milhões de euros (mais do que 15 vezes o valor correspondente da… Autoeuropa!...);

 

v) Enquanto na economia nacional, mais de 50% dos trabalhadores não têm ensino secundário completo, no sector das agências de viagens mais de 50% dos colaboradores têm ensino superior cumprido.

 

4. Não podendo ainda ter a certeza do conjunto de causas que originou a falência da Thomas Cook, arriscaríamos que terá, pelo menos, contribuído o facto de ser um conglomerado "sem rosto", pertencendo a fundos internacionais, e gerido por gestores que no ano anterior terão, como sempre, levado para casa milhões em prémios. Algo a que já assistimos noutros sectores, nomeadamente o bancário, em Portugal. Algo a que não nos arriscamos a assistir no sector das agências de viagens em Portugal, preenchido por empresários que todos os dias arriscam a própria pele, dependendo a sua vida do sucesso dos negócios, e não dos prémios anuais.

 

Acresce que o sector é dos mais regulados, tendo um fundo de protecção do cliente que se tem demonstrado bem mais efectivo do que o equivalente no sector bancário (onde os clientes andam nas ruas a pedir o dinheiro de volta!...). Sim, senhor governador do Banco de Portugal, amanhã os clientes voltarão a entrar, física ou digitalmente, nas nossas agências, mesmo depois da quebra da Thomas Cook. Arriscaríamos, sobretudo depois da quebra da Thomas Cook.

Presidente da direção da Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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