Opinião
As transferências imediatas - oportunidade (ou ameaça) para o sistema financeiro
O sistema financeiro deverá remover barreiras e implementar práticas, designadamente em termos de preçários, que potenciem uma adoção generalizada das transferências imediatas nos pagamentos remotos e nos pontos de venda físicos.
Em 2019, assinalam-se os 20 anos da criação do euro. Ao longo deste período, os sistemas de pagamentos, em Portugal e na área do euro, sofreram uma profunda transformação e enfrentaram permanentes desafios, criando oportunidades de desenvolvimento sem precedentes.
Passados estes 20 anos, com a crescente digitalização das economias e das sociedades, as alterações regulamentares ocorridas em 2018 (via Diretiva de Serviços de Pagamento revista - DSP2), o aparecimento de novos operadores "fintech" e a disrupção tecnológica em curso, abre-se uma nova era para os prestadores de serviços de pagamento e para os seus utilizadores, que valorizam cada vez mais serviços com elevada disponibilidade, rapidez e facilidade de utilização.
Como resposta a este novo paradigma, diversas comunidades bancárias desenvolveram soluções de pagamentos imediatos, que asseguram o processamento contínuo de transferências bancárias [24h/7d/365d], com disponibilização dos fundos nas contas dos beneficiários até 10 segundos ("real-time").
Estas soluções são cómodas, rápidas e eficientes, podendo ser gradualmente introduzidas como meio preferencial em diversos modelos de pagamento. Há já países europeus (Holanda, Finlândia e, em certa medida, Espanha) a avaliarem as vantagens de uma migração das transferências a crédito tradicionais para as transferências imediatas.
Nesse sentido, a definição pelas Autoridades Europeias, no final de 2017, de um "standard" comum ("scheme SEPA Instant Credit Transfer" - SCT inst), como base para a criação de soluções de transferências imediatas interoperáveis no espaço europeu, constituiu um marco importante para a evolução futura da prestação de serviços de pagamento na Europa.
Quer a Comissão Europeia, quer o Banco Central Europeu consideram que o advento das transferências imediatas - via "scheme" comum - vem suportar o desenvolvimento e a evolução dos pagamentos de retalho na Europa, afirmando-se como alternativa a soluções de âmbito meramente nacional ou fornecidas por um número limitado de marcas de cartões de pagamento (predominantemente com origem nos EUA).
Em Portugal, a solução desenvolvida pela comunidade nacional (base SCT inst) arrancou em setembro de 2018. A adesão do mercado superou as melhores expectativas, atingindo, até 31 de março de 2019, cerca de 1,2 milhões de transferências, com um valor médio de 1.000 euros por operação.
São inúmeras as vantagens das transferências imediatas face a outras soluções de pagamentos. Por ser uma solução baseada apenas em movimentação de contas, sem necessidade de cartão bancário, as transferências imediatas conduzem a uma simplificação da cadeia de valor e a uma diminuição do número de intervenientes envolvidos no ciclo de pagamento. Nesse sentido, a sua adoção originará uma redução de custos e comissões, a par de maior abrangência e eficiência no processamento das operações (em especial, face às transferências imediatas baseadas em cartão).
As empresas e os organismos do Estado podem beneficiar significativamente com a adoção generalizada das transferências imediatas, na medida em que estas permitem, por um lado, a confirmação e a disponibilização imediata dos fundos e, por outro, agilizar a reconciliação contabilística e a gestão de cobranças, reduzindo consideravelmente os custos de "back-office".
Em termos de inovação, as transferências imediatas são o instrumento por excelência para promover a integração de processos de digitalização, quer na utilização P2P, quer em pontos de venda. As transferências imediatas são, também, o instrumento óbvio a utilizar nos novos serviços de pagamento estabelecidos pela DSP2 e nas plataformas de "open banking" em fase de implementação.
Tem vindo a ser assumido, por autoridades e operadores, que a crescente digitalização da economia vem potenciar as transferências imediatas como o instrumento de pagamento que melhor pode responder aos novos hábitos e expectativas dos utilizadores, contribuindo, ainda, para a redução dos instrumentos de pagamento que afetam negativamente os resultados e a eficiência do sistema bancário.
Tanto os particulares, como as empresas e o Estado poderão beneficiar de uma utilização gradualmente mais intensiva deste instrumento. A estratégia coletiva deverá, pois, apontar nesse sentido.
Foi, por isso, com surpresa e preocupação que se observou, recentemente, um decréscimo do volume de transferências imediatas, após um crescimento inicial muito significativo e promissor. Para esta inversão muito contribuiu o facto de os bancos terem passado a aplicar preçários mais elevados nas transferências imediatas (de certa forma, desproporcionados face a outros instrumentos).
Este fator é crítico para o sucesso das transferências imediatas, porquanto desincentiva a sua adoção habitual pelos clientes bancários. A introdução das transferências imediatas implicou um esforço de implementação e de investimento significativo pela comunidade bancária nacional, que apenas poderá ser rentabilizado se forem criadas condições que propiciem economias de escala na sua utilização.
Neste sentido, o sistema financeiro deverá remover barreiras e implementar práticas, designadamente em termos de preçários, que potenciem uma adoção generalizada das transferências imediatas nos pagamentos remotos e nos pontos de venda físicos.
Só assim será possível manter Portugal no grupo dos países com melhores sistemas de pagamentos, abrir espaço à inovação, reforçar a competitividade do nosso sistema financeiro e, mais importante, disponibilizar soluções que apoiem o desenvolvimento da economia e facilitem o dia a dia dos cidadãos.
Administrador do Banco de Portugal