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24 de Julho de 2014 às 19:00

A verdadeira armadilha da deflação

A crise financeira internacional há muito passou, mas o crescimento da atividade global ainda não regressou com o vigor que era suposto.

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Segundo o "Bank of International Settlements" (BIS) – o banco central dos bancos centrais – essa desilusão decorre da incapacidade das autoridades de política económica em erradicar os problemas estruturais que enfermam a economia mundial. O BIS vai mais longe, caracterizando de contraproducente o teor extraordinariamente acomodatício da política monetária prosseguida pela generalidade dos bancos centrais. Isto porque, em essência, a expansão incessante da liquidez e a compressão das taxas de juro destinada a suavizar as condições financeiras favorece o aumento do endividamento agregado que, afinal, foi a principal causa da debacle anterior. E, como refere o BIS no seu relatório anual, a dívida total (pública e privada) do mundo inteiro saltou de 216% do PIB às vésperas da crise do "subprime", em 2007, para 238% do PIB no final de 2013. Em sua defesa, os bancos centrais insistem que todos os riscos são secundários em face do perigo de deflação. Perigo de deflação?

 

Existe uma boa razão para que não sejam efetuadas sondagens sobre o tema da deflação: já se sabe a resposta de antemão! A diminuição generalizada e sustentada dos preços dos bens de consumo é, para a esmagadora maioria das pessoas, uma bênção. Curiosamente, a mesma sondagem efetuada a uma população de economistas provavelmente resultaria na conclusão oposta. Não porque um economista exulte de felicidade quando descobre que o bife que tanto aprecia encareceu desde a sua última visita ao talho; o seu problema com a deflação resulta do impacto nocivo que esta exerce sobre os agentes económicos mais endividados. O problema desta linha de raciocínio é escamotear o facto de que cada débito tem associado um crédito, pelo que tudo o que alivie o serviço de dívida dos devedores retira rendimento aos aforradores. Por outro lado, a queda dos preços incrementa o poder de compra de devedores e credores igualmente. Conclui-se, portanto, que a deflação é um fenómeno inequivocamente positivo.

 

Posto de forma simples, os preços são a tradução do valor dos bens e serviços em termos do dinheiro. Ora, se a quantidade dos primeiros crescer mais rapidamente que a quantidade do segundo, os preços tendem a cair. Daí que a deflação, tal como a inflação, seja sempre a consequência (e nunca causa) desta dinâmica relativa entre produtos e moeda. Decorre que a deflação tanto pode ser consequência de um processo virtuoso de aumento da produtividade – que acelera a oferta de produtos – como ser o resultado de um processo purgativo, normalmente associado a crises financeiras, de liquidação de crédito; sendo que o crédito é a principal fonte de criação de moeda nas economias contemporâneas. Curiosamente, pese embora as deflações da primeira estirpe sejam historicamente muito mais comuns, as da segunda estirpe são claramente sobrevalorizadas, em grande parte devido ao trauma causado pela Grande Depressão dos anos 20 do século passado e, mais recentemente, às duas décadas perdidas do Japão. Significa, então, que o pavor da deflação que enforma a política monetária global é de cariz emocional e funda-se numa confusão entre correlação e causalidade. Ao eleger a deflação como alvo a abater, os bancos centrais acabam por funcionar como um espelho mágico ao avesso, que reflete feio um bonito rosto; ou como uma debulhadora disfuncional, que guarda a cizânia e cospe o trigo. O problema deste sentimentalismo doutrinário é que os inconvenientes transcendem em muito o eventual défice de rigor intelectual da política monetária; ele é gerador de consequências nefastas.

 

Entre outras perversões, as condições monetárias excessivamente expansionistas destinadas a combater a deflação levam os investidores a adquirir indiscriminadamente ativos financeiros que lhes proporcionem rendimento, o que provoca a sua valorização para patamares insustentáveis, tanto na vertente acionista, como na de dívida. A inevitável formação de bolhas nos mercados financeiros, mais cedo do que tarde, desencadeia uma nova crise financeira, com as consequências que já se conhecem: recessão económica, insolvência generalizada e a consequente liquidação massiva de crédito. Ou seja, as condições propícias para a deflação. Como escreveu o BIS – preto no branco – no seu relatório anual recentemente publicado, as políticas monetárias contra a deflação acabam por gerar as condições económicas e financeiras que causam… deflação. Esta é a verdadeira armadilha da deflação.

 

Chief economist do Millenniumbcp

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

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