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A Ferrovial, a Jerónimo Martins, os impostos e a banalidade da mentira

Feitas as contas, o custo desta reestruturação será 3,33 vezes superior à poupança fiscal gerada no primeiro ano. Portanto, sou obrigado a epilogar que só alguém que viva alheado da vida empresarial acredita na lengalenga de que a razão fundamental para trocar Madrid por Amesterdão são os impostos.

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Há uns anos (mais do que queria), numa aula de European Union Tax Law na Queen Mary University of London – a minha alma mater – o Professor Tom O´Shea exaltou a sala ao afirmar que as "Multinational Companies don’t vote, so they are the perfect scapegoats for Governments and politicians in general".

A frase, provocatória, criou em mim um constante apelo e procura da verdade – posição nem sempre fácil quando os acusados, e (algumas vezes) as vítimas da calúnia, de escárnio e maldizer são empresas multinacionais e / ou agentes do "grande capital". Em resumo, lido mal com populismos, incluindo este em que as empresas servem de bode expiatório das falhas e dos erros dos decisores políticos. Neste sentido, este artigo é apenas um exemplo modesto, mas esclarecedor – ou pelo menos assim espero – da verdade sobre "o caso Ferrovial" (e à boleia deste, da Jerónimo Martins, que nos últimos dias foi injustamente atacada pelo dr. Prata Roque, que afirmou que "O Grupo Soares dos Santos deslocalizou ficticiamente a sua sede para a Holanda não pagando impostos em território português, mas pagando impostos na Holanda porque as taxas de imposto são mais baixas do que em Portugal") e a decisão de transferir a sua sede fiscal de Madrid para Amsterdão.

Comecemos pelos factos: no dia 28 de Fevereiro, o Grupo Ferrovial – uma das maiores multinacionais do sector das infraestruturas, transportes e mobilidade – comunicou à Comisión Nacional del Mercado de Valores (CNMV) a sua intenção de transferir a sua sede de Madrid para Amesterdão. A decisão será finalmente votada na Junta General de Accionistas no dia 13 de Abril, mas não é esperada qualquer mudança de rumo uma vez que os maiores accionistas – os irmãos Rafael e María del Pino e o fundo de investimento britânico The Children’s Investment (TCI) – já declararam o seu apoio à dita reestruturação, que resultará na fusão entre a Ferrovial S.A., empresa espanhola, e a Ferrovial International SE, empresa holandesa.

O anúncio de Rafael del Pino, Presidente da Ferrovial, fez mossa e gerou reacções mais ou menos irracionais de vários actores políticos espanhóis: Pablo Echenique, líder parlamentar do Podemos, afirmou "Si Ferrovial se va a Países Bajos para pagar menos impuestos, entonces, que sea Países Bajos y no España los que les den contratos de obra pública, no? El dinero público español mejor invertirlo en contratos con empresas que respetan a nuestro país y pagan sus impuestos aquí"; Raquel Sánchez, Ministra dos Transportes, Mobilidade e Agenda Urbana, que "La gente de bien no se va a paraísos fiscales ni a Malta o Países Bajos"; Yolanda Díaz, Ministra do Trabalho, que "Tenemos que trabajar en una Europa en la que el dumping fiscal no exista. Ferrovial ha crecido al albur de enormes contratos con la administración pública. Le pido compromiso con nuestro país. Pido a los accionistas que reconsideren esta decisión, y espero que desde el Ministerio de Economía se adopten las medidas que sean para evitar que esto se produzca. Esto no es ser español. Ser español es defender la permanencia en tu país"; e Pedro Sánchez atacou a "falta de patriotismo" de Rafael del Pino.

Depois desta marcha de nacionalismo da esquerda espanhola – algo divertido tendo em conta as relações e as cedências (recentes) aos vários independentismos, incluindo alterações ao Código Penal – importa demonstrar com elementos objectivos, (1) que a Ferrovial paga e continuará a pagar impostos em Espanha; (2) que os Países Baixos não fazem qualquer dumping fiscal e estão longe, muito longe, de ser um paraíso fiscal; (3) e que, nos dias que correm, e bem, muito poucas empresas multinacionais mudam a sua sede, exclusiva e primeiramente por motivos de poupança fiscal.

Primeiro: em 2022, 18% das receitas da Ferrovial tiveram origem em Espanha e resultaram em 282 milhões de Euros de impostos para os cofres do Reino. A Ferrovial pagou e continuará a pagar impostos sobre os lucros resultantes da sua actividade em Espanha, independentemente da sua sede fiscal ser em Madrid ou em Amesterdão. No fundo, o critério para a tributação directa é e continuará a ser um critério territorial, isto é, a Ferrovial ou qualquer outra empresa que exerça actividades comercias (ou outras) em Espanha, pagará impostos sobre os lucros dessas mesmas actividades, repito, em Espanha.

Segundo: acusar os Países Baixos de "dumping fiscal" revela uma total ignorância sobre o termo, ou simplesmente um spin impossível de provar. Senão vejamos: o termo "dumping" caracteriza uma prática comercial em que uma empresa vende os seus produtos ou serviços a um preço inferior ao preço de mercado – perdendo portanto dinheiro – com o objectivo de ganhar maior quota de mercado. Trocando "empresa" por Países Baixos e "produtos ou serviços" por impostos, significaria que o Governo holandês não só não cobraria impostos, como os pagaria? Um absurdo e uma impossibilidade jurídico-constitucional, mesmo para algumas cabeças que ocupam o espaço público e mediático com inverdades como esta.

Depois, a acusação de membros do Governo espanhol de que os Países Baixos são um paraíso fiscal. Algo aliás irónico vindo do Governo de um país que permite que as empresas ETVE, ou seja, que empresas cujo único objecto social seja a mera participação em empresas estrangeiras, não paguem quaisquer impostos sobre os lucros e / ou dividendos distribuídos pelas suas subsidiárias – um regime fiscal sem comparação com o dos Países Baixos, onde as holdings são sujeitos passivos de imposto, mas adiante.

Voltando à acusação de que os Países Baixos são um paraíso fiscal, li (e reli) as EU black and grey lists (actualizadas a 14 de Fevereiro deste ano) e não encontrei os Países Baixos, pelo que só posso concluir que estamos perante mais uma daquelas tentativas de repetir (e voltar a repetir) uma narrativa fabricada, até que esta se torne uma espécie de "verdade oficial do regime". Pela parte que me toca, cá estarei para fazer esse contraditório.

No entanto, e com razão, perguntará o leitor: mas os Países Baixos não têm um regime fiscal favorável, competitivo e atractivo para "as grandes multinacionais"? Certamente que sim. Por exemplo, têm um regime de isenção total sobre a tributação de dividendos estrangeiros, quando no caso espanhol, 5% destes dividendos são tributados, e têm uma rede "generosa" de Double Tax Treatries, entre outros aspectos mais técnicos, mas só isto, por si só, não justifica que uma multinacional deixe o sol de Madrid pela chuva de Amesterdão.

Terceiro: a mudança da Ferrovial para os Países Baixos – que terá um custo de 20 milhões de Euros, segundo os cálculos do Banco Sabadell – resultará numa "poupança" de 6 milhões de Euros em impostos que deixa de pagar em Espanha, ou seja, menos 2% do total de impostos que pagou nesse país em 2022. Feitas as contas, o custo desta reestruturação será 3,33 vezes superior à poupança fiscal gerada no primeiro ano. Portanto, sou obrigado a epilogar que só alguém que viva alheado da vida empresarial acredita na lengalenga de que a razão fundamental para trocar Madrid por Amesterdão são os impostos. Mas, mesmo que assim fosse, que legal ground teria o Governo de um Estado-Membro da UE para restringir a livre circulação de capitais e o livre estabelecimento de empresas, princípios fundamentais do mercado único europeu, e plasmados em artigos próprios do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia? Nenhum.

Assim, importa saber que motivos tornam os Países Baixos um destino "atractivo" para a Ferrovial (ou para a Jerónimo Martins):

  1. O triple A (ou AAA) atribuído à dívida pública holandesa – algo raro, uma vez que apenas os Países Baixos e outra dezena de países no mundo tem essa classificação – e por conseguinte, um acesso mais fácil e barato a financiamento. Aspecto fundamental num contexto de subida das taxas de juro; e
  2. A segurança, a certeza e a estabilidade jurídicas, além da celeridade na resolução de conflitos de natureza administrativa e fiscal.

Parecem detalhes, notas de rodapé, mas que fazem toda a diferença, e que tornam os Países Baixos francamente mais atractivos do que Espanha (ou Portugal).

Termino dando razão ao Professor Tom O´Shea: este discurso intimidatório, ameaçador e de hostilização para com as empresas, como a Ferrovial – e que estamos fartos de assistir também em Portugal – tem várias consequências: menos receitas fiscais, menos capital, menos investimento, menos emprego, e pior, que não me saia da cabeça "Um Grande, Grande Amor" do José Cid.

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