Opinião
A benevolência da tolerância
Tenho para mim claro que o desafio das atuais gerações é só um: asseverar a liberdade e a democracia.
Com uma imprensa cada vez menos livre e financeiramente de rastos, o mundo convertido ao processo digital, o futuro das novas gerações é assegurar que estes não se esgotem como um outro qualquer recurso natural. A sociedade plastificou-se. O problema que enfrentamos pós-covid-19 não será seguramente apenas uma crise de saúde pública ou uma crise económica profunda. É mais grave do que isso e expõe uma realidade que ninguém ligava patavina: o respeito pelos valores mais básicos – a democracia.
A liberdade e o livre-arbítrio. Nunca como antes se tornou óbvia.
Há alguns anos que os sinais são claros: o quarto poder, vulgo meios de comunicação, deixou de ter jurisdição. Os governos não dão importância, o povo não se interessa, e a democracia é um emaranhado de fake news e de tiktoks instantâneos. Os jornalistas voltaram a ser uns peões num jogo em que foram deixados a falar sozinhos. O índice da liberdade de imprensa passou a ser um cardápio de sobremesas.
A distribuição e transferência de poder em processos de tomada de decisão alterou-se. Vejamos. O problema não é uma questão ideológica ou política. É uma matéria de base do sistema. Nos Estados Unidos, o Presidente mente descaradamente, com uma soberba infantil. A verdade passou a ser banida. O respeito pela liberdade e pelos valores democráticos tornou-se um bagatela. No Brasil, as instituições democráticas têm vindo a derreter, como um gelado, ao longo das últimas duas décadas. Alguns países na América do Sul gracejam com a democracia e com o povo. Na Rússia, ser candidato da oposição é uma profissão de elevado risco. Geralmente não se chega ao fim. Em África, é o jogo do monopólio sob a constante vitimização do colonialismo.
Na União Europeia, a realidade não é nova e está a ser totalmente ignorada.
Se pensarmos que Estados-membros como a Hungria e a Polónia não querem aceitar o Estado de direito, temos de uma vez por todas deixar de ser tolerantes com os intolerantes.
Um dos temas fortes da cimeira europeia de julho passado teve que ver com a necessidade de serem cumpridas as regras do Estado de direito para que os países tenham acesso às novas verbas, o que pões dois destes países em xeque — Hungria e Polónia estão sob o procedimento que prevê sanções no caso de violação grave e persistente dos valores da União Europeia.
E agora, olhando para o nosso umbigo para exemplificar: António Costa elegeu o dinheiro aos valores. Ao defender, à saída de uma reunião com o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, que a questão do Estado de direito, embora “central” para Portugal, não deve ser relacionada com as negociações sobre o plano de recuperação económica.
A China: a próxima fase do “capitalismo” de estado chinês está em marcha. Desde que assumiu o poder em 2012, o objetivo político de Xi tem sido o de apertar o controlo do partido e esmagar a dissidência em casa e no exterior. O Ocidente tem de estar preparado para uma maratona mais longa entre as sociedades abertas e o capitalismo de estado da China.
A colossal economia chinesa é complexa e já está totalmente integrada com o resto do mundo. A solução talvez passe pela criação de novas aptidões diplomáticas e conceber novas regras estáveis que permitam a cooperação em algumas áreas, como o combate às mudanças climáticas e pandemias, e ao comércio para continuar a fazer vingar os direitos humanos e a liberdade.
A ciência política moderna precisa de uma revisão. Recordo aqui Karl Popper que foi um defensor da tolerância. Ele disse que a intolerância não deve ser tolerada, pois se a tolerância permitir que a intolerância tenha sucesso, a própria tolerância estará ameaçada. Temos sido, infelizmente, muito tolerantes com os intolerantes. O grande desafio dos anos 20 deste século – e no mundo pós-pandemia – é defender o essencial: a democracia e uma imprensa livre e forte para que as nações possam escolher o seu destino.