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Avelino de Jesus - Economista e professor no ISEG 17 de Fevereiro de 2020 às 10:15

Referendar a eutanásia?

Quem está contra deveria estar ciente de que o referendo não será mais do que uma manobra dilatória. O referendo presta-se a manipulações de que os defensores da eutanásia são peritos.

Os nossos deputados preparam-se, no próximo dia 20, para copiar - em muito piores condições económicas e sociais - o que raros países fizeram no âmbito da eutanásia. Compensam, assim, a incapacidade para contrariar o atraso económico com tiradas de extremo "avanço" no comportamento social. Por outro lado, parece - ideia alimentada pelo mais mordaz anedotário nacional - estarem a exibir as suas melhores ideias para responder ao envelhecimento da população, às insuficiências do SNS e ao risco de insustentabilidade do sistema de pensões.

O que está em causa é atribuir legitimidade a um comité estatal para poder matar alguém a pedido do próprio. Trata-se de um problema moral de supremo alcance que o sistema político deveria abordar com a máxima cautela.

 

Existem três pontos incontornáveis.

 

Primeiro, a capacidade do doente para decidir que quer morrer, quando, doente, por definição está diminuído.

 

Segundo, a capacidade e legitimidade do comité que aprova e/ou executa a decisão de morte. Estes comités vão ser constituídos por verdadeiros militantes da eutanásia. Apesar de tudo, as enormes objeções morais que a morte a pedido ainda enfrenta, os que aceitarem fazer parte daqueles comités não irão praticar actos médicos mas sim colaborar num movimento social pretensamente avançado, logo dispostos a concordar com os pedidos de doentes fragilizados.

 

Terceiro, o problema ético capital: posso optar por ser escravo para evitar as insuportáveis dificuldades que a liberdade me traz? Sendo a vida um valor maior que a liberdade, posso optar por morrer? Ocorre aqui sublinhar a enorme hipocrisia dos que usam o conceito de liberdade para defender a eutanásia; geralmente, estão sempre prontos para limitar a liberdade do indivíduo face ao Estado, mas neste caso aproximam-se dos liberais facção anárquica. Os defensores mais escrupulosos da eutanásia reconhecem que os riscos são graves e grandes, mas optam por arriscar. Confiam, crêem no Estado benevolente e omnisciente para os ultrapassar. Mas aqui os erros não têm emenda. A sociedade que atira fora os velhos e doentes quer ver com alívio este novo instrumento de "libertação". Ao contrário, estamos na presença de um grave retrocesso dando ao Estado novos instrumentos e motivos para matar. Conferir legitimidade à matança é absolutamente repugnante.

 

Dada a importância do que está em causa, a ligeireza com que os deputados aceitam decidir nesta matéria releva de uma insuportável arrogância que pode legitimar o desprezo que parte crescente da população lhes dedica. Fariam bem os deputados em abster-se de decidir, remetendo a tarefa para instância mais democrática.

 

Para alguns dos que são a favor da eutanásia e para muitos dos que são contra, o referendo seria a solução. Para os mais ponderados defensores da eutanásia, o referendo seria o modo mais sólido, apesar de mais demorado, de levar a água ao seu moinho.

 

Quem está contra deveria estar ciente de que o referendo não será mais do que uma manobra dilatória. O referendo presta-se a manipulações de que os defensores da eutanásia são peritos.

 

Uma solução conservadora que se apegue ao "status quo", ignorando que uma parte da sociedade - por egoísmo e desapego aos valores morais básicos - está inquieta, também não parece adequado. Os cultores destes valores estão em desvantagem e têm vindo a perder terreno e influência, incapazes de usar com sucesso os novos meios de influenciar. Esta perda de influência já atinge enorme parte da população, mas está, em particular, presente entre a oligarquia política. O referendo é uma armadilha sujeita aos mesmos defeitos para exprimir a vontade e a opinião da população; não passa de mera manobra dilatória que a oligarquia ultrapassará com alguma paciência e moderação, com a vantagem, para esta, de lhe conferir uma maior legitimidade democrática.

 

A solução seria - não a imitação e a ligeireza que o Parlamento se prepara para seguir ou a armadilha do referendo que outros já ensaiam - conferir solenidade e gravidade ao problema e inovar com uma decisão verdadeiramente democrática. Esta seria entregar a decisão a uma assembleia nacional "ad hoc" especificamente constituída para o efeito cujos membros seriam escolhidos em número significativo e por sorteio, com procedimentos rigorosos para assegurar a representativos da população.

 

Pelas razões acima referidas, não é certo o resultado do trabalho de uma tal assembleia. Mas, mesmo que este fosse favorável à morte, ao menos seria uma decisão democrática na acepção rigorosa do termo. Acresce que esta inovação permitiria introduzir no sistema político um método de decisão democrático, alternativo ao sistema oligárquico em vigor cujas insuficiências empurram cada vez mais os votantes para soluções autoritárias e iliberais. 

 

Economista e professor no ISEG

 

Artigo em conformidade com o novo antigo Ortográfico

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