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04 de Fevereiro de 2014 às 00:01

A escapadela de Hollande e a "lei de Say"

A escassez de procura não aparece por mistério, mas por erro de parte significativa dos produtores induzidos por sinais errados dos poderes públicos, da banca e de consumidores dopados e sem rendimentos sustentáveis.

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Em 14 de Janeiro passado o presidente francês apresentou uma nova política económica em contradição com o que prometera na campanha eleitoral. Esta nova política auto-apresenta-se com vários termos assaz pitorescos: "política de oferta", "socialismo de oferta", "redefinição da base ideológica do progressismo", "política de oferta de esquerda". Pretende ser um "pacto de responsabilidade" que visa "um mínimo de empatia com as empresas". Rechaça ser uma "viragem liberal", assumindo-se antes como uma "aceleração social-democrata" inspirada nos países do Norte da Europa. Para que não restem dúvidas Hollande garante: "O programa não é liberal porque o estado vigia".

Para além dos chavões, na realidade, a nova política visa a competitividade, a diminuição das despesas públicas e as reformas estruturais.

A mudança só aparentemente foi brusca e inesperada como tantos distraídos proclamam. Tudo parece ter sido planeado desde o início, assim:

Primeiro: na campanha eleitoral promete o maná e a felicidade, compromete-se a renegociar o tratado orçamental europeu e a rejeitar o programa de Sarkozy - que agora adopta - de redução dos custos laborais, corte da despesa pública, subida do IVA.

Segundo: em Junho de 2012 contra o que prometera na campanha, renuncia a renegociar o tratado orçamental europeu.

Terceiro: em Novembro de 2012 encomenda o relatório Gallois para pôr em marcha as primeiras medidas de oferta com créditos fiscais às empresas.

Quarto: flexibilização da legislação laboral.

Quinto: Enfim, em Janeiro de 2014 anuncia o "pacto de responsabilidade" com o objectivo geral de acelerar 1% o crescimento do PIB, prevendo como instrumentos a redução, até 2017, de €50 biliões nas despesas públicas e o corte de €30 biliões nos encargos laborais das empresas

Hollande foi bem claro: "Não fui tomado pelo liberalismo, pelo contrário. É o Estado que toma as iniciativas". Evoca o "Estado estratego". É criado um misterioso "Observatório das contrapartidas"; estas não se conhecem em detalhe, mas prevêem objectivos quantificados de emprego, de formação e de negociação de remunerações.

O anúncio desta nova política provocou em Krugman tal choque que elaborou um artigo com o título: "Escândalo em França". O escândalo não foi o exuberante portefólio feminino do presidente, mas o facto de este "adoptar as desacreditadas doutrinas da direita". Para ele "a situação na Europa deve-se aos conservadores insensíveis e obcecados, incitados pelos políticos atordoados e sem carácter da esquerda moderada".

Krugman vê, à distância, o que Hollande não enxerga na própria casa: "A França está inundada de recursos produtivos, tanto mão-de-obra como capital que não estão a ser utilizados porque a procura é insuficiente". Provas? "A prova está em que a inflação está a baixar rapidamente". Eis a metodologia macroeconómica no seu melhor.

Há uma frase de Hollande que, particularmente, chocou Krugman: "Na realidade, a oferta cria a sua própria procura". Esta frase enuncia a chamada "lei de Say" que a quase totalidade dos economistas "mainstream" foi ensinada a desprezar.

Vista como os keynesianos a apresentam, e como Hollande agora repete, a "lei de Say" está errada. Mas esta versão da "lei de Say" é diferente do teorizado Jean-Baptiste Say1. Hollande está a correr atrás de uma teoria deturpada e errada.

O que Say propõe é que nos períodos de crise os produtores dão-se conta que erraram sobre o que os consumidores querem. Quando se produz um bem gera-se procura de outros bens. A produção não gera a sua própria procura, mas a procura de outros bens. A produção cria consumo, embora possa haver escassez ou excesso de alguns bens específicos.

Perante a conjuntura actual, Say diria que não há uma falta de procura global: há inadequação da oferta em vários sectores que não corresponde à procura solvável. Os produtores foram induzidos em erro pelo crédito fácil e por estímulos artificiais à procura (crédito e falsas expectativas de rendimento futuro).

Esta deturpação de Say, operada por Keynes muito convenientemente, marcou o início da macroeconomia, coisa que os clássicos não conheciam. A adopção da metodologia dos grandes agregados em vez da perspectiva dos sectores dos clássicos, Say incluído, deu origem à divisão insanável entre os economistas. Onde uns notam falta de procura agregada outros vêem escassez de oferta agregada.

A frase de Hollande releva da interpretação dominante da "lei de Say" adoptada por Keynes para a poder ridicularizar. Vista de forma agregada, numa economia sem sectores, ela é errada e não torna compreensíveis as crises. Mas a análise de Say supõe uma economia de múltiplos sectores e nesse âmbito está correcta; a escassez de procura não aparece por mistério, mas por erro de parte significativa dos produtores induzidos por sinais errados dos poderes públicos, da banca e de consumidores dopados e sem rendimentos sustentáveis.

Na actual situação, numa perspectiva clássica, como a de Say – que é mesoeconómica – seria recomendável não estímulos gerais de procura ou de oferta, mas o redireccionamento da produção para sectores com procura sustentável. Coisa diferente do proposto por Hollande que deixa supor que uma política de oferta (agregada) criará a sua própria procura (agregada).

1Apesar da importância da "refutação" de Jean-Baptiste Say na construção da teoria keynesiana dominante, poucos leram este economista mal amado e pior interpretado. O leitor poderá aceder livremente à sua principal obra ("Tratado de Economia Política") em português numa tradução brasileira de 1983 em: http://www.libertarianismo.org/joomla/index.php/biblioteca/173-jean-baptiste-say/677-tratado-de-economia-politica. A questão dos mercados é apresentada no capítulo XV do Livro Primeiro, onde o leitor poderá verificar a diferença entre o que foi popularizado por "lei de Say" e o que o autor realmente afirma.

Economista e professor do ISEG

majesus@iseg.utl.pt

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