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21 de Agosto de 2017 às 20:25

O interior que arde

Se os fogos que consomem o interior fossem à entrada de Lisboa ou do Porto, com a sua devastação, olharíamos com a mesma complacência para as falhas de coordenação e afetação de meios?

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Continuaríamos a aceitar que ninguém assumisse responsabilidades? Deixaríamos que as explicações fossem de modo a tratar tudo isto como uma enorme fatalidade que não pode ser evitada?

 

À hora que escrevo, o fogo anda à solta na Serra da Estrela e às portas da minha terra, a Covilhã. Foi na Covilhã, ainda na parte urbana, que o fogo começou, sem eucaliptos, e dali se espalhou, até em zona de pinhal limpo e ordenado. Na semana passada, o fogo consumiu a bem ordenada Serra da Gardunha, levando uma parte da produção agroalimentar da Cova da Beira.

 

Conheço as justificações que correm para que tudo isto seja tratado como uma enorme fatalidade num ano extraordinariamente severo com demasiadas ocorrências, muitas delas simultâneas.

 

Sucede que essas explicações são desmentidas no recente relatório do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que faz uma análise comparativa do período de janeiro a 15 de agosto dos últimos dez anos.

 

De acordo com o ICNF, o ano de 2017, apenas o sexto ano com mais ocorrências dos últimos dez, com apenas mais 5% de ocorrências face à média desses anos, apresenta mais 257% de área ardida face à mesma média: o valor mais elevado de área ardida dos últimos dez anos!

 

E não se diga que as ocorrências, porque ineditamente simultâneas, explicam essa desproporção.

 

De acordo com o ICNF, o ano de 2017 apresenta apenas o 56.º valor mais elevado em número de ocorrências, sendo que julho teve um número de ocorrências bem abaixo da média dos últimos dez anos, e agosto valores pouco expressivamente acima dessa média.

 

E não se diga que, neste fatal ano, a severidade atmosférica justifica o que tem vindo a passar-se.

 

De acordo com o ICNF, o índice de severidade diário acumulado não foi sequer o mais severo desde 2003, ficando abaixo do de 2005 e com valores equivalentes a 2012 e 2015, anos com mais ocorrências e muito menos área ardida.

 

Temos, pois, mais 5% de ocorrências e mais 257% de área ardida, uma chocante desproporção que evidencia os problemas que tenho ouvido na Beira Interior: falta de coordenação no comando, ineficaz afetação de meios, longas esperas por uma ordem superior para avançar no combate.

 

Quem está no terreno a combater merecia melhor coordenação.

 

Quer isto dizer que os fogos são causados por estas falhas? Claro que não, e aí haverá um conjunto grande de explicações, que vão desde o estado da floresta à negligencia dos proprietários passando por atos criminosos e falta de instrumentos e políticas adequadas. O que estas falhas explicam, e é apenas disso que falo, é a absoluta desproporção entre o número de ocorrências, mesmo diárias e mesmo com este tempo, e a enormidade da área ardida.

 

Este saldo faz-se sentir sobretudo no interior do país (Castelo Branco, precisamente, é o distrito mais afetado) e vai muito para além da destruição de floresta (já de si muito grave) ou de terrenos ao abandono: há uma parte da nossa economia que se vai, há produções que se perdem, empresas que fazem contas à vida, trabalhadores que não sabem o dia de amanhã, anos e anos de trabalho que desaparecem.

 

O impacto deste saldo no interior do país é tão avassalador e devastador que custa perceber como este relatório do ICNF tem vindo a ser ignorado, quase como se não escancarasse as nossas falhas.

 

É por isso que pergunto: se os fogos que consomem o interior fossem à entrada de Lisboa ou do Porto olharíamos com a mesma complacência para as falhas de coordenação e afetação de meios?

 

Advogado

 

Este artigo está em conformidade com o novo acordo ortográfico

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