Opinião
As outras sequelas do caso Centeno
Pode a afirmação de João Galamba, colocando o Presidente no mesmo barco que o ministro das Finanças, ter sido desautorizada pelo PS, mas ficou claro até onde podem ir as amargas palavras de um PS quando se sente ameaçado, colocado em causa.
A permanência do caso Centeno na agenda, contra a vontade do Presidente da República, de toda a esquerda e de alguma opinião publicada, assume uma especial relevância, que vai além da já de si relevante circunstância de o ministro ter faltado à verdade a uma comissão parlamentar de inquérito: algumas coisas mudaram e inauguram uma nova fase política.
Em primeiro lugar, o primeiro-ministro e o Presidente da República perceberam, pela primeira vez nos seus mandatos, que entre os seus poderes não está o de darem casos políticos como encerrados.
Um e outro tentaram, cada um por si, e por motivos distintos, decretar a irrelevância política das faltas à verdade do ministro. E houve quem se tivesse deixado levar pelo decreto, não se interessando pela mentira ou clamando pela preservação da Caixa.
Inesperadamente, porém, a habilidade e a sageza do primeiro-ministro e do Presidente, que em casos anteriores se revelaram eficazes, fracassaram flagrantemente: ficaram ambos a falar sozinhos, a decretar sucessivamente o fim de um caso que o resto do país se encarregou de fazer avançar. Ambos se vêem agora sujeitos a um nível de sindicância e de contraditório a que não estavam habituados, e para o qual precisam de encontrar o tom certo se quiserem manter a autoridade.
Em segundo lugar, o Presidente da República percebeu que quem se mete com o PS leva mesmo.
Pode a afirmação de João Galamba, colocando o Presidente no mesmo barco que o ministro das Finanças, ter sido desautorizada pelo PS, mas ficou claro até onde podem ir as amargas palavras de um PS quando se sente ameaçado, colocado em causa. Um sabor que o Presidente provou e de que seguramente não gostou.
Aquelas palavras foram um nítido aviso ao Presidente: no dia em que este estiver no caminho do PS, os socialistas não hesitarão em fazer dele, com engenho e método, uma força de bloqueio. E sabemos bem a quantidade de gente que os socialistas juntam nesses combates, ou não fosse o mais estabelecido partido do regime.
Não é, porém, coisa nova, façamos justiça: Cavaco Silva fê-lo com Soares e Sócrates fê-lo com Cavaco, e ambos se ampararam, e assim resistiram, na coerência e na solidez da maioria presidencial que os elegeu - algo que PSD e CDS lembrarão ao actual Presidente se este quiser estar preparado para enfrentar a organizada fúria dos socialistas.
Em terceiro lugar, o Bloco de Esquerda e o PCP tornaram-se enfim partidos do regime, iguais aos outros, silentes quando o problema está nas suas fileiras, vocais quando os problemas se revelam nas fileiras dos outros.
Basta ver os debates televisivos ou parlamentares para perceber o fim do seu estatuto de grilos falantes. Quando confrontados com a mentira, assobiam para o lado, como já assobiaram na hora de ouvir socialistas responsáveis por negócios ruinosos na CGD, como já assobiaram no caso da Galp e como continuarão a assobiar nos futuros casos que aparecerem.
Essa perda de inocência, para a qual nenhum dos partidos da esquerda se preparou convenientemente, tornou-se flagrante nos últimos dias e será aproveitada não só pela oposição, mas também pelos socialistas. Não é de crer que estes partidos se sujeitem a isso de borla, inertes.
Estas três mudanças provam o efeito disruptivo do caso Centeno no panorama político português. De alguma forma, as peças do tabuleiro, que tinham estado mais ou menos imóveis desde o início dos mandatos do Governo e do Presidente, movimentaram-se. E não falo apenas de um novo ânimo da oposição. Esse é o mais superficial efeito deste caso.
Advogado