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Disrupção no mundo pôs marcas à prova, desde logo na busca por um espaço na prateleira

Disrupções trouxeram desafios, mas também oportunidades e a substituição do óleo pelo azeite pode ser um exemplo. Mas, em face da atual conjuntura, além das dificuldades em saber onde comprar e a que custo, a grande luta das marcas é pela sua afirmação.

Mariline Alves
01 de Junho de 2022 às 22:00
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A disrupção nas cadeias de valor que a tempestade perfeita, que veio com a pandemia e se agravou com a guerra na Ucrânia, veio mudar não só a forma como as empresas operam, como o modo como os consumidores se comportam. Em paralelo, trouxe desafios adicionais às marcas que, talvez mais do que nunca, procuram afinar estratégias para se (re) afirmarem e não perderem o seu espaço na prateleira.

Foi pelo menos a essa conclusão que chegaram, esta quarta-feira, vários atores económicos durante um painel subordinado ao fenómeno, inserido no II Congresso das Marcas, organizado pela Centromarca – Associação Portuguesa de Empresas e Produtos de Marca.

"A maior parte dos problemas a que se assiste é na logística. A dificuldade é como comprar, onde comprar e em que quantidades comprar. A questão hoje é como aceder e a que custos. Esse é o grande problema", afirmou João Potier, diretor-geral da Mundiarroz, empresa que tem no portefólio marcas como a Cigala.

Embora a guerra em pleno celeiro da Europa tenha colocado o mundo em estado de alerta, o mesmo responsável deixou claro que "esta crise nos cereais não é nova" e deu o exemplo da "grande crise" de 2007 em todo o mundo que levou não só à escassez de cereais, incluindo arroz, como a subidas de preço na ordem dos 40%. Mas "foi um fenómeno que demorou três a quatro meses a resolver", ao contrário do que se verifica atualmente, ressalvou.

"Agora é mais grave: Há arroz, há cereais, mas estão em outras partes e a dificuldade está em lá chegar", apontou João Potier, lembrando que, nos últimos anos, particularmente após 2005 na sequência de políticas da União Europeia, países do sudeste asiático, como o Myanmar, Camboja ou Vietname "taparam parte da produção europeia" de arroz.

Em Portugal - explicou - nunca se produziu mais de 50% das necessidades, ou seja, historicamente sempre se importou outros tantos. E no caso da produção nacional, que está a ser semeada por esta altura, o cenário também não é animador. "Não se afigura nada fácil para o próximo ano", incluindo ao nível dos preços, advertiu, lembrando que há outros fatores que mexem com o desempenho da produção, como a escalada dos preços da energia, dos adubos ou dos produtos fitofarmacêuticos, além de outras questões, que "afetam todos", como a falta de água.

Para o diretor-geral da Mundiarroz, uma mudança de paradigma tem de acontecer para pôr termo ao atual "paradoxo" que se vive em Portugal. "Temos uma taxa de autobastecimento de 50%, mas do arroz que se produz em Portugal só cá fica 20 a 25%, atendendo a que "conseguimos arranjar um fenómeno de exportação".

"Temos um mercado de consumo que tem de ser mudado para não haver tanta dependência do exterior. Apesar de a exportação ajudar muito a indústria, até em termos de remuneração, o caminho é conseguir alterar o paradigma", sublinhou, ao defender que tal passa nomeadamente pela afirmação das marcas, embora reconheça que tal é "difícil".

"Há uma coisa curiosa: Apesar de ter uma quota cada vez mais reduzida, o carolino é o único tipo comercial de arroz em que, na repartição das vendas, o peso das marcas de fabricante - são quatro ou cinco -  é superior ao peso das marcas próprias", indicou. Já, em termos globais, no caso dos arrozes importados, "a grande percentagem das vendas são as marcas próprias", ou seja, as do distribuidor, exemplificou.

Luta por espaço na prateleira

Estudos sobre o comportamento dos consumidores têm apontado, em geral, para um maior recurso às chamadas marcas brancas em tempos de maior aperto financeiro. E esse foi, aliás, um dos dados que o presidente da Centromarca, Nuno Fernandes Thomaz, referiu na abertura do congresso: "Períodos de dificuldades são favoráveis ao crescimento das marcas próprias, seja pelo argumento do preço mais baixo, seja pela agressiva concorrência entre as marcas próprias dos diferentes retalhistas ou pelo ganho de quota dos retalhistas do chamado sortido curto a que estamos a assistir".

Mas para Claúdia Lourenço, diretora-geral da Procter & Gamble, tal não é líquido: "Obviamente, estamos a viver um ambiente de inflação em que as marcs dos distribuidores estão a ganhar quota, mas isso não significa que as dos fabricantes não estejam", afirmou, apontando que, seja em que caso for, "marcas são marcas" e o que ambas têm de colocar "o consumidor ao centro" e "ver quem chega melhor a eles".

"Neste momento, é a necessidade de valor a que fala mais alto", mas "não há uma fórmula para umas e para outras", vincou.

Já o presidente da Centromarca não tem dúvidas. "Vai ser impossível fugir de uma batalha feroz pelo espaço de prateleira e provavelmente serão ainda mais agravados os correspondentes custos de acesso. Temos que fazer tudo para manter a liberdade de escolha do consumidor face à antecipada hegemonia das marcas".

Assim, apontou, "as marcas terão que ser capazes de usar as suas armas para contornar momentos em que o consumidor verá diminuída a sua capacidade de comprar, consumir e escolher".


E essas armas incluem, como foram sintentizando os oradores ao longo do dia, aposta na qualidade, sustentabilidade ou inovação.

Escassez de óleo aumenta procura por azeite

Embora os desafios sejam muitos, a disrupção também trouxe oportunidades. E no cabaz alimentar, os óleos foram talvez dos primeiros produtos a sentir o embate da guerra, com o impacto a chegar ao ponto de, em Portugal, por exemplo, uma garrafa de óleo custar mais do que uma de azeite. Mas o saldo não será totalmente negativo, já que abriu caminho à transferência do consumo para uma alternativa mais saudável e proporciona a estabilidade que a autossuficiência dá.

Mas não há dúvidas de que o choque inicial foi grande, como atestou o CEO da Sovena, Jorge de Melo: "No dia 24 de fevereiro fomos impactados de forma muito forte por essa tempestade perfeita. Reagimos rápido a procurar outras origens, como Argentina ou França ou a potenciar nova colheita em Espanha, que tinha condições para o fazer. Não olhamos muito ao preço que nos estava a ser pedido e, depois, houve esse impacto negativo de algum desconhecimento de como são formados os preços que passamos para o retalho e o retalho refletiu". 

"Fomos muito atacados nas redes sociais, tivemos que gerir uma situação complicada", partilhou o CEO da empresa que detém marcas como o azeite Oliveira da Serra e o Óleo Fula, dando o exemplo das comparações que foram feitas com o preço do óleo de girassol no Luxemburgo, por exemplo, onde o IVA é de 3% contra 23% em Portugal. 

A procura não foi apenas de novos mercados, mas também de alternativas, como o óleo de colza, indicou Jorge de Melo. Certo é que, "em alguns mercados", a Sovena "começou a vender mais azeite", designadamente para a indústria conserveira. "Há uma transferência do consumo para azeite", confirma, sustentando que, a seu ver, "pode haver condições para um maior consumo" do chamado ouro líquido, também por outras razões, o que, a acontecer, será uma "oportunidade" não só para o setor, mas para o país também já que Portugal não depende do exterior.

Os desafios que se vivem com as matérias-primas, como os cereais, estendem-se também às embalagens, sobretudo atendendo a que a sustentabilidade figura cada vez mais na ordem do dia e nas cartas de compromissos das empresas, em resposta à preferência do próprio consumidor.

"A questão dos materiais é muito semelhante, também têm sido muito impactados pela logística", confirmou João Partidário, diretor de vendas da Nestlé Portugal.

"Atuamos em duas vertentes: na antecipação da relação com os fornecedores, ao nível das tendências e volumes, e na agilidade, ou seja, trabalhando muito a rede de fábricas, operando em espelho, para conseguir mitigar os riscos de escassez", indicou o responsável, apontando que tal acarreta custos. "É claro que na antecipação tivemos de assumir algum capital investido em 'stock' exatamente para fazer face às disrupções na cadeia".

Para fazer face aos atuais desafios, a inovação figura como uma das chaves, mas são precisos recursos humanos, que emerge hoje como o calcanhar de Aquiles de muitas indústrias.

"Não é nada fácil. Trabalhamos um produto que vai directamente da terra para a mesa e hoje em dia a maior parte das indústrias já não são atractivas. Por exemplo, se eu quiser substituir uma pessoa daqui a três anos tenho de começar a procurar agora e a prepará-la", apontou João Potier.

Jorge de Melo também partilhou a dificuldade, mas com um exemplo de como Portugal não é caso único. "Temos duas unidaeds fabris nos EUA. Há três anos comprámos uma empresa com cinco camiões, porque a logística era complicada. Faltam-nos dois condutores. Podem ganhar 100 mil dólares por ano, mas não os encontramos".

"É uma realidade nova. Temos que nos adaptar", rematou.

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