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O adeus ao Presidente que foi “o rosto e a voz da nossa liberdade”

Mais de meia centena de familiares, amigos e altas individualidades participaram esta terça-feira nas cerimónias fúnebres do ex-presidente da República, Mário Soares, falecido aos 92 anos. Pelas ruas da cidade alguns milhares de cidadãos anónimos juntaram-se à homenagem e assistiram à passagem do cortejo até ao cemitério dos Prazeres. Soares foi fundador do PS, ex-secretário-geral do partido, ex-Presidente da República, ex-primeiro-ministro, deputado e, como disse António Costa, foi “em momentos decisivos o rosto e a voz da nossa liberdade”. O dia foi de despedidas, de emoções e de aplausos.

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10 de Janeiro de 2017 às 22:34
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Rosas amarelas, cravos vermelhos, o hino nacional, gente a gritar "Soares é fixe", punhos e mãos no ar. E também silêncios de respeito e de pesar. No segundo dia do funeral do ex-presidente da República, falecido no passado dia 7 de Janeiro, muitos lisboetas saíram à rua para lhe prestar homenagem, primeiro ainda no Mosteiro dos Jerónimos, onde esteve em câmara ardente, e depois pela cidade, até ao Cemitério dos Prazeres.

 

Um funeral com honras de Estado como ainda não tinha acontecido desde o 25 de Abril e que envolveu os três ramos das Forças Armadas, mais a GNR, num total de mais de um milhar de soldados. E foi com uma guarda de honra que, a meio da manhã, se iniciaram as cerimónias nos claustros do Mosteiro. Soares não era católico e não teve um funeral religioso, apesar de o velório ter decorrido no Mosteiro. A urna – por cima uma bandeira de Portugal, ao lado o busto da República – esteve primeiro na Sala dos Azulejos e foi depois para os claustros, os mesmos onde, em 1986, foi assinado o tratado de adesão à CEE.

 

E foi a voz do Soares de então que encheu o silêncio daqueles primeiros momentos, com a gravação de um trecho do discurso que então proferiu. Uma voz tão conhecida de todos que quase nem pareceu estranho ouvi-la ali. Nos discursos que se seguiram, todos quiseram evocar a vida de Mário Soares e o papel que desempenhou na história do País. Primeiro os filhos, emocionados, depois António Costa, que gravou uma mensagem na Índia, onde se encontra em visita de Estado, Ferro Rodrigues e Marcelo Rebelo de Sousa.

 

Mário Soares nunca foi um homem de consensos e não seria agora, no momento da sua morte, que os alcançaria. Nos últimos dias, se muito houve quem o elogiasse, nos jornais e nas redes sociais, também não faltou quem lhe apontasse erros e defeitos e até comportamentos ofensivos para o País, como ter pisado a bandeira na altura em que viveu no exílio. "Ao contrário do que a PIDE pôs a circular, o meu pai nunca pisou a bandeira que sempre honrou e levantou bem alto", fez questão de afirmar João Soares num discurso em que por várias vezes se lhe embargou a voz.

 

Com um cravo vermelho na lapela, recuou as tempos em que o pai foi várias vezes preso político, mas manteve "a têmpera, coragem e força de vontade" de quem sempre disse aos filhos que "não se chorava à frente dos PIDE". "Ele viveu mais tempo em ditadura do que em Liberdade e com uma capacidade de resistência e uma coragem excepcionais", frisou, lembrando o seu "gosto de viver", o "conhecimento que tinha de Portugal" e o gosto pelo "mar português, que sempre o encantou".

 

O pai que "ganhou um lugar entre as figuras da segunda metade do século XX", mas que, como diria a seguir a irmã, Isabel Soares, era também o pai que "estava sempre presente, sempre com tempo para ouvir". Ele que, contou, ensinou os filhos, "desde muito pequeninos a não ter medo do escuro nem das ondas do mar da Foz do Arelho".

 

Era o lado familiar de Soares que este, aliás, sempre partilhou um pouco com os portugueses, tal como Maria Barroso, a sua companheira de seis décadas, falecida em 2015.  Maria Barroso que foi também evocada nesta cerimónia, com uma gravação da sua voz a declamar "Os Dois Poemas de Amor da Hora Triste", de Álvaro Feijó. Isabel Soares quis sublinhar que "é justo dizer" que "o pai nunca teria feito o que fez ou chegado onde chegou sem a presença tranquila, serena e doce, mas firme, dessa mulher admirável que foi a sua".

 

"Em suma, Soares é fixe"

 

Do outro lado do Mundo, António Costa, que se encontra numa visita de Estado à Índia, foi um dos ausentes e mandou um depoimento em vídeo onde salientou a importância que Soares soube ter na história do País, ele que foi o "exemplo de político que até ao fim se assumiu integralmente frontal" e que "pode ter-se enganado às vezes no acessório, mas nunca se enganou no fundamental".

 

Soares, disse o primeiro-ministro, "lutou sempre por um pais vivo e democrático" e "foi em momentos decisivos o rosto e a voz da nossa liberdade", coisa de que "raros homens se podem orgulhar". Tinha uma "energia que mobilizava e inspirava, o optimismo de quem nunca desistia". "Em suma, como tantos dissemos tantas vezes, Soares é fixe".

 

Costa tem sido alvo de algumas críticas por não ter interrompido a viagem e regressado para o funeral do ex-Presidente da República, mas João Soares, no seu discurso, fez questão de o desculpar publicamente, enviando ao primeiro-ministro um "especial agradecimento" pelas cerimónias prestadas ao seu pai.

 

"Assim foi Mário Soares"

 

"À sua maneira, no seu tempo e no seu modo, um singular humanista e construor da portugalidade", diria por seu turno Marcelo Rebelo de Sousa, que citou Ricardo Reis para dizer que "Assim foi Mário Soares": "Para ser grande, sê inteiro: nada/Teu exagera ou exclui./Sê todo em cada coisa. Põe quanto és/No mínimo que fazes."

 

Nos Jerónimos ouviu-se o Requiem de Mozart e Fauré a cerimónia terminou com o Hino Nacional. A assistir estiveram mais de meia centena de familiares, amigos e altas individualidades incluindo os membros do Governo e os líderes parlamentares. E vários chefes de Estado estrangeiros, como o Rei Filipe de Espanha.

 

Muitos seguiram depois com o cortejo até ao Cemitério dos Prazeres, onde o corpo do antigo Presidente da República, falecido aos 92 anos, ficará num jazigo de família. A urna foi transportada por um armão da GNR e ladeada por 84 cavalos e à saída, num gesto de despedida, os caças da Força Aérea sobrevoaram o Mosteiro.

 

A primeira paragem do cortejo fúnebre deu-se junto ao Parlamento e à Fundação Mário Soares e mais à frente, no Largo do Rato, onde se situa a sede do PS, viveu-se novo momento de grande emoção. Várias centenas de pessoas esperavam e gritavam "Soares é Fixe" e "PS, PS". Mais uma vez, uma gravação da voz de Soares sobrepôs-se a todas as outras: "Viva o Socialismo!".

 

"Uma lição de democracia"

 

O Rato ficou para trás e o cortejo prosseguiu pela Rua Pedro Alvares Cabral, em direcção à Estrela. Um pouco mais à frente um inesperado grupo de crianças aplaudia e acenava. Eram alunos do jardim escola João de Deus e, como diria o director, António Ponces de Carvalho, aos microfones da TSF, associaram-se à cerimónia numa "lição de democracia".

 

Soares haveria de gostar. Provavelmente ria-se, com a sua "gargalhada contagiante" que António Costa recordou. E falaria com elas, como costumava fazer com os alunos do Colégio Moderno que encontrava na sua rua, no Campo Grande. Ao longo destes dias têm-se multiplicado na imprensa e nas redes sociais os testemunhos de quem com ele privou e que falam de um homem simples e acessível e, ao mesmo tempo, dono de uma enorme força de vontade. Alguém que, como disse a sua filha, ouvia muito os outros, mas no fim fazia sempre aquilo que queria.

 

O vento não deixou chegar aos Prazeres o som dos 21 tiros de salva disparados do Tejo pela corveta Jacinto Cândido, da armada portuguesa, mas no silêncio do cemitério ouviu-se ainda uma vez mais a conhecida voz de Mário Soares, num som gravado num comício em 1986:  "Uma certeza sempre tive: a verdade não pertence em exclusivo a ninguém e não há nada que substitua a tolerância". E o tempo deste dia de Inverno, como que a juntar-se à homenagem no momento triste da despedida, foi-se fazendo cada vez mais cinzento e frio.

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