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No labirinto do carisma, onde fica José Sócrates?

Três anos depois da "tortura em democracia", é a vez de o antigo primeiro-ministro se debruçar sobre o "dom profano" do carisma num novo livro. O Negócios assistiu ao lançamento.

Bruno Simão/Negócios
29 de Outubro de 2016 às 06:25
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2016, Outubro, dia 28. Lisboa. Dois mil anos depois de São Paulo a ter escrito pela primeira vez nas Cartas aos Coríntios e cem após o alemão Max Weber a ter resgatado para a política, o antigo primeiro-ministro José Sócrates dedica o segundo livro que publica no espaço de três anos ao carisma, essa "estranha e enigmática palavra".

Entre a sua obra de 2013, que versava sobre a tortura nas democracias, e este final de tarde de sexta-feira em que apresentou em Lisboa "O Dom Profano, Considerações sobre o carisma" vão pouco mais de três anos. Pelo meio, um processo judicial hiper-mediatizado com acusações e defesas feitas na praça pública e dez meses na prisão – a primeira de um líder de Executivo em Portugal.

Testes duros ao carisma de alguém que já se definiu como "animal feroz" e que durante cerca de seis anos liderou dois Governos. E ainda hoje gera ódios e paixões. Tanto que nem desta vez a polémica o abandonou.

No início do mês, a revista Visão noticiou alegadas suspeitas da investigação da Operação Marquês de que o livro agora apresentado terá sido escrito por um professor de Direito (Domingos Farinho) e pela mulher, Jane Kirkby. Terão recebido 100 mil euros para dar assessoria técnica às duas obras assinadas por Sócrates através de uma empresa detida por Rui Mão de Ferro, arguido no processo e sócio de Carlos Santos Silva, outro dos arguidos. 

Farinho desmentiu que tivesse escrito a tese de mestrado que deu corpo ao primeiro livro e recusou ter tido qualquer participação no segundo. "Uma falsidade", há-de também dizer Sócrates aos jornalistas com ar agastado no final da apresentação do livro, refutando alegações que diz terem o "objectivo político" de "denegrir pessoas". Mas, para já, à medida que caminha do carro para a sala onde apresentará a obra, o semblante é ainda descontraído.
 
Chega com 20 minutos de atraso. À esquerda e à direita, acena cumprimentos com o mesmo sorriso de olhos semicerrados. Recuamos seis, sete anos, e vemos o primeiro-ministro numa das inúmeras passagens pela mesma FIL para inaugurar feiras empresariais e "puxar pelas energias do país." A diferença é que agora na rua, além dos jornalistas, não há quase mais ninguém à sua volta.

Sem Soares nem Lula, mas com os indefectíveis

Lá dentro, são também mais anónimas as caras que enchem o auditório I do centro de feiras, no Parque das Nações, sobrepondo-se ao aparato das figuras públicas que fizeram questão de acompanhar o antigo secretário-geral do PS na última apresentação. São mais de 300 pessoas, se contadas as cadeiras, e há gente em pé. Mas há agora menos socialistas ilustres na sala que da última vez.
 
Mário Soares, mais ausente ultimamente de cerimónias públicas, não esteve mas foi lembrado. E Lula da Silva, que prefaciou o livro em 2013, também não está em Lisboa. De 2013 para cá, também o seu carisma foi posto à prova. Tem o seu nome envolvido no escândalo Lava-Jato no Brasil e a Presidente que lhe sucedeu, Dilma Rousseff, foi destituída do cargo. Ao "velho leão", Sócrates dedicou três páginas exclusivas nesta obra.
 
Na primeira fila da sala, como sempre, os indefectíveis de Sócrates: o seu ministro da Presidência, Pedro Silva Pereira, o ex-ministro das Obras Públicas Mário Lino e os antigos secretários de Estado Paulo Campos e Fernando Serrasqueiro. Entre os históricos, o ex-autarca do Porto, Fernando Gomes.

Apesar de ter deixado a defesa de Sócrates no ano passado, também Proença de Carvalho não falha a apresentação, tal como João Araújo, o seu sucessor na tarefa. E, do Governo Costa, a única presença notada é a do secretário de Estado da Defesa Nacional, Marcos Perestrello.

Carlos Silva, líder da UGT, também veio, para prestar solidariedade ao "camarada e amigo", como socialista e cidadão."O que quisemos foi dizer: José, nós estamos cá, contas connosco, naquilo que for necessário dos nossos préstimos. Estamos a prestar um serviço à democracia. Não temos medo de dar a cara por alguém que, sim, tem acusações pendentes, mas que o tornam num resistente," justifica ao Negócios. 

E há as rosas, sempre as rosas, nos três ramos que outras tantas senhoras fazem chegar ao ex-governante, no caminho para a apresentação, e que Sócrates agradece com beijinhos. Ficarão deitadas em cima da mesa durante toda a sessão, viradas para o público.

Afinal faz falta à política ou o país não o merece?
 
"Só-cra-tes! Só-cra-tes!" Homens e mulheres, sobretudo na casa dos 40, 50, 60, que se levantam e gritam quando pressentem a entrada do ex-líder socialista na sala. Muitos vieram do Norte, uns em transporte próprio e outros, como João Santos, num autocarro que com mais 22 pessoas partiu de Alijó – de onde é originária a família de Sócrates. Está em Lisboa, diz, em "reconhecimento ao trabalho que ele fez no nosso concelho e na nossa região".
 
Amigo pessoal do ex-primeiro-ministro, acredita que ele está a reagir muito bem ao "assunto um bocado complicado" – o eufemismo que usa para a Operação Marquês, o processo judicial em curso que investiga o ex-governante por indícios de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção - e confia que a verdade virá ao de cima. "Penso que ele tornará a ser o grande Sócrates que nós conhecemos. Homens como ele fazem falta à política", afirma.

Quem não está tão certa do regresso é Maria Manuel Alves Cardoso. Também veio de Trás-os-Montes, de Vila Pouca de Aguiar. Diz que Sócrates está "inocentíssimo" e considera-o "o nosso melhor primeiro-ministro de sempre". Mas duvida que o país mereça o seu retorno à vida política activa. "Não sei se Portugal vale a pena para ele," atira.

A investigação, que dura há pelo menos dois anos e já fez mais de uma dezena de arguidos, ganhou em Setembro passado mais seis meses da Procuradoria-Geral da República para encerrar o inquérito. Muito menos - 48 horas - foi o tempo que Sérgio Sousa Pinto -, aliado de Sócrates ainda antes do primeiro Governo e que há um ano saiu da direcção do PS em divergência com a estratégia de aproximação a PCP e BE – teve para ler as 160 páginas do livro antes de o apresentar.

Fala da "ambição de higienizar o fenómeno do carisma" depois dos "horrores" trazidos pelo "moderno carisma do século XX"; discorre sobre o "populismo encantatório dos homens providenciais" e a "brutalidade de quem governa exclusivamente para ser amado." Para depois concluir que este é um livro "impregnado do seu autor, um livro profundamente do seu autor."

Sócrates agradece, sorridente. E também ao público, cuja presença na sala, reconhece, "tem um significado político."

Um livro dedicado ao "improvável, ao imprevisível e ao extraordinário"

- Não há som, mais alto, não há som.

- Eu levantei-me.... espero que agora se ouça melhor.

- Cá atrás não se ouve, não há som.

- Já se ouve?

Burburinho. Agora sim, o microfone funciona e a voz chega ao fundo da sala.

"- Ahhhhhhh", ouve-se a plateia em alívio.

Sócrates já pode fazer-se escutar. Nos próximos minutos, zurzirá no projecto europeu - um "Governo de ninguém", em "negação da democracia", ameaçado de "deriva tecnocrática" e com "medo de tomar decisões políticas." Falará ainda do mistério, do enigma, da subversão e da ambiguidade do carisma e da sua "dupla face" - democrática e totalitária. O tema dará para cruzar teologia, sociologia e alquimia.

"Os seres humanos, saibam-no ou não, são capazes de realizar o improvável. É por gostar do improvável, do imprevisível e do extraordinário que decidi escrever este livro," justifica, acrescentando que o carisma "nunca foi de obediência, foi sempre um pouco revolucionário." A espaços, a um canto da sala, soa o tema do filme "Missão Impossível" num telemóvel. O toque é rapidamente abafado.

A única altura em que a audiência interrompe o discurso com aplausos é quando Sócrates fala de Mário Soares, colocando-o ao lado de nomes como Nelson Mandela, Willy Brandt ou Martin Luther King na galeria dos que "conseguiram transformar ódios profundos de ressentimento num espírito de reconciliação democrática, permitiram um novo começo aos seus povos e às suas comunidades."

"Tenho uma crença que me vem de dentro que me diz que está inocente"

Termina a intervenção, responde a perguntas dos jornalistas e volta à mesa. "Desculpem, eu agora tenho de ir assinar uns livros". Meia dúzia de pessoas, fora da fila para os autógrafos, aproximam-se: "Senhor engenheiro: dá-me o gosto?". As reclamações não se fazem esperar. Quem está na frente da bicha, vendo-se ultrapassada pelo grupo, desabafa: "Não foi nada disto que combinámos", e dirige-se sem cerimónia a Sócrates.

Todos ficarão até ao fim à espera do autógrafo, da dedicatória, da "selfie", da fotografia, do beijinho, do abraço ou do aperto de mão do socialista. Garantem, todos os que falaram ao Negócios, que o carisma que dá tema ao livro assenta que nem uma luva à personalidade do ex-primeiro-ministro.

É o caso de Maria Augusta, a amiga "do Norte" que veio à capital pelo tema do livro: "Interessa-me profundamente". Ou Ana Silva, do Porto, que "adora" José Sócrates. Um sentimento que "já vem de família, o meu pai e a minha mãe também o adoravam," confessa. 

Mas Ana não tem só a adoração. Tem também "uma crença que me vem de dentro que me diz que está inocente. (...) Todo ele é inteligência, é saber, é carismático".

"Talvez o livro incorpore nesse sentido um bocadinho dele próprio," arrisca.
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