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Contabilistas acusam Fisco de "desrespeitar o Estado de direito"
Paula Franco, bastonária dos contabilistas certificados, diz que a Autoridade Tributária não está a cumprir a lei e insiste em que as coimas a contribuintes que entregaram o IRS fora de prazo deviam ser anuladas. A Ordem, diz, está preparada para "ir até às últimas consequências".
"A Autoridade Tributária não respeita o Estado de direito e não respeita os contribuintes e isso é lamentável". Paula Franco, bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, reage assim às recentes instruções da AT relativas aos contribuintes que este ano entregaram a sua declaração de IRS fora do prazo, durante o mês de julho, tendo sido confrontados com multas.
A OCC tem vindo a defender que não deveria haver lugar à aplicação de coimas, uma vez que o Fisco não cumpriu os prazos legais para disponibilização dos formulários para o preenchimento e submissão das declarações de rendimentos, mas a decisão das Finanças, agora conhecida, é a de que quem não entregou até 30 de junho tem mesmo de pagar uma coima, ainda que neste caso a mesma possa ser dispensada, devendo, para o efeito, os contribuintes em causa reclamar junto do Fisco.
Em causa está um artigo da Lei Geral Tributária (LGT) que prevê que "os órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração recíproco" e que determina que a AT deve disponibilizar, no Portal das Finanças, os formulários digitais em formato que possibilite o seu preenchimento e submissão para a entrega do IRS, IRC e IES, com uma antecedência mínima de 120 dias em relação à data limite do cumprimento da obrigação declarativa. Este ano, garante a OCC, os formulários só foram disponibilizados nas condições previstas na lei no dia 29 de março, pelo que, e mais uma vez de acordo com o que prevê a LGT, isso deveria dar aos contribuintes o mesmo número de dias para, passado o prazo de entrega da declaração, poderem ainda fazê-lo sem serem multados.
O Fisco, no entanto, insiste em que houve a "disponibilização a 1 de março de 2021 no Portal das Finanças, dos formulários digitais da Modelo 3 do IRS do ano de 2020, suscetível de preenchimento pelo contribuinte, bem como o ficheiro em formato XML". E salienta que a lei não exige que os formulários possam ser submetidos nos 120 dias antes do final do prazo, uma vez que este, como prevê o código do IRS, começa a 1 de abril e termina a 30 de junho.
Lei pretende facilitar o preenchimento
Esta norma da LGT foi aprovada em 2018 depois de uma iniciativa levada a cabo nesse sentido por um grupo de contabilistas a que se juntou também a OCC. O objetivo era facilitar a vida aos contabilistas, que tendo acesso mais cedo aos formulários, teriam também mais facilidade em cumprir os prazos de entrega. Entretanto, já este ano, o Parlamento voltou a alterar a lei clarificando-a no sentido de que a disponibilização com os tais 120 dias de antecedência tenha de ser feita "em formato que possibilite o seu preenchimento e submissão", já que, explica Paula Franco, no ano anterior o Fisco alegou ter disponibilizado os formulários, só que os mesmos não podiam ser preenchidos.
No ofício circulado agora disponibilizado, a AT vem dizer que no caso do IRC faz sentido que os formulários sejam disponibilizados e passiveis de entrega com maior antecedência, até porque o código do IRC não estabelece uma data para iniciar o prazo de entrega. "Em IRC verifica-se a autoliquidação do Imposto, ou seja, nestas obrigações está subjacente todo um ónus por parte do contribuinte de preparação de todos os dados necessários para o preenchimento das declarações", mas no IRS, lê-se no documento,"ao contrário" o contribuinte "está muito menos onerado com a recolha de dados para preenchimento da declaração, pois a AT já pré-preenche largamente grande parte dos anexos da Modelo 3, já calcula as deduções à coleta e é a AT que tem todo o ónus de calcular/liquidar o imposto".
Não é bem assim, afirma Vítor Vicente, presidente da Associação Nacional Contabilistas (ANACO), que, tal como Paula Franco, também afirma que os formulários "só ficaram disponíveis para poderem ser trabalhados no final de março". O contabilista defende que "é errada a avaliação feita em relação ao IRS", uma vez que "há contribuintes que têm um volume de dados às vezes tão complicados como os de uma empresa e que têm igualmente contabilidade organizada. E depois há muitas pessoas que têm rendimentos de várias categorias e em que o preenchimento da declaração de IRS é igualmente pesado".
Paula Franco critica as "deficiências jurídicas" do ofício circulado e não se conforma. A Ordem, diz, "irá até às últimas consequências". Até porque, lembra, além das coimas estão em causa benefícios fiscais que o contribuinte perde por não entregar o IRS a tempo, caso do IRS que é devolvido anualmente por alguns municípios.
No ano passado, em que se verificou já uma situação semelhante, a OCC avançou com várias ações em tribunal, mas espera ainda que as mesmas tenham um desfecho.
Para já, os contribuintes que tenham sido multados por terem entregue a declaração no período entre 01/07/2021 e 26/07/2021 poderão pedir a dispensa da coima, de acordo com um despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Para o fazerem, porém, terão de apresentar defesa no processo que lhes tenha sido aberto pelas Finanças. Fica por se saber o que poderão fazer os contribuintes que já pagaram as coimas que à partida terão sido todos, a menos que tenham decidido não cumprir os prazos de pagamento, deixando o processo arrastar-se.