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Estudantes ricos afastam os pobres do ensino superior e do mercado de trabalho
A massificação do acesso ao ensino superior em Portugal não se traduziu na eliminação das desigualdades, com os alunos de famílias mais favorecidas a entrarem nos cursos mais seletivos, enquanto os mais pobres vão sobretudo para os politécnicos, conclui estudo da Fundação Belmiro de Azevedo.
O contexto socioeconómico é o fator que mais promove as desigualdades no acesso, sucesso e permanência/abandono dos estudantes no ensino superior em Portugal, não tendo a massificação do sistema garantido a equidade na entrada nos principais cursos, conclui o mais recente estudo do "think tank" Edulog da Fundação Belmiro de Azevedo.
"Também na entrada para o mercado de trabalho são identificadas desigualdades, sendo que os estudantes de contextos desfavorecidos enfrentam maior risco de desemprego, sugerindo que o ensino superior pode nem sempre cumprir o seu papel de promotor da mobilidade social", sinaliza o estudo "Estudantes nacionais e internacionais no acesso ao ensino superior", que é apresentado nesta segunda-feira, 29 de novembro.
Os estudantes que decidem candidatar-se ao ensino superior são influenciados nas suas escolhas pelo contexto socioeconómico de onde provêm, afirma o Edulog.
"Por um lado, as notas obtidas no ensino secundário e nos exames nacionais estão fortemente correlacionadas com o contexto socioeconómico familiar e alunos com melhores notas de candidatura podem candidatar-se aos cursos mais seletivos que, regra geral, são oferecidos pelas universidades. Por outro lado, os estudantes de contextos mais desfavorecidos terão mais dificuldade em suportar os custos associados à frequência de uma instituição privada, ou de suportar os custos de mobilidade e o nível de vida em algumas cidades", explica o "think tank" da instituição que tem o nome do fundador da Sonae e é dirigido pelos seus herdeiros.
Relativamente à decisão de um estudante permanecer ou abandonar o ensino superior, verifica-se que, "quanto menos favorecido é o contexto socioeconómico do estudante, maior é a taxa de abandono".
Segundo o mesmo estudo, as contribuições das famílias têm um peso no seu orçamento superior à média da União Europeia, "o que é agravado pelas menos boas condições socioeconómicas das famílias portuguesas, sobretudo nas regiões do interior do País", realça.
"Com a perceção de que se trata de um investimento com retornos incertos no longo prazo, muitos indivíduos são forçados a entrar mais cedo no mercado de trabalho para aumentar o rendimento familiar", enfatiza.
Em média, os estudantes que terminam a sua formação académica em universidades públicas "tendem a ter uma menor propensão ao desemprego do que os dos politécnicos públicos", uma diferenciação que ocorre "pelo facto de os institutos politécnicos receberem estudantes de contextos socioeconómicos mais diversos, sendo uma maior propensão ao desemprego um reflexo das desigualdades já existentes no momento do acesso, e não uma falha do ensino politécnico no cumprimento da sua missão", defende o Edulog.
Outros fatores são identificados neste estudo, nomeadamente "uma menor propensão para o desemprego em cursos com mais vagas ou com uma maior proporção de estudantes provenientes do concurso de acesso para maiores de 23 anos".
Alterar as condições de atribuição de bolsas de ação social para combater as desigualdades
Para Alberto Amaral, membro do conselho consultivo do Edulog, "esta investigação deverá servir como ponto de partida para uma reflexão mais alargada sobre o papel que o ensino superior tem (e deverá ter) na redução das desigualdades".
"Vivemos, atualmente, numa fase de recuperação económica, que acredito poder ser uma janela de oportunidade para reformarmos o nosso sistema de ensino, de modo a tornar a nossa população mais qualificada e, consequentemente, a nossa economia mais competitiva", afirma.
Para isso, "é necessário promover a concertação entre o decisor político e as instituições de ensino superior, que objetive um acesso equitativo a universidades e politécnico e a criação de mecanismos que reduzam as taxas de abandono", defende Alberto Amaral, antigo reitor da Universidade do Porto e que deixou há um ano a liderança da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, a reguladora do setor, de que foi mentor e presidente - durante 12 anos - desde a sua fundação.
Para combater as desigualdades atuais, o Edulog apresenta um conjunto de recomendações ao nível das políticas públicas, como "a alteração das condições de atribuição de bolsas de ação social, incluindo o seu valor, de modo a alargar o número de estudantes elegíveis; a intensificação do trabalho de complementaridade entre as instituições de ensino superior e o mercado de trabalho, para se conseguir uma melhor integração dos alunos no emprego; ou o reforço da oferta formativa no ensino superior, para acompanhar o aumento do número de candidatos".
Também preconiza "o reforço dos processos de orientação das escolhas dos estudantes, ainda no ensino secundário, e a aposta em ações de sensibilização para os estudantes e famílias de contextos mais desfavorecidos, com o propósito de demonstrar os benefícios do ensino superior".
Número de estudantes estrangeiros mais que duplicou na última década
O estudo "Estudantes nacionais e internacionais no acesso ao ensino superior" procurou também mapear o número de estudantes internacionais inscritos no ensino superior português e analisar a sua evolução, assim como compreender as motivações, estratégias, fatores de atratividade e os desafios das instituições de ensino superior em Portugal no recrutamento de estudantes internacionais.
Houve uma duplicação do número de estudantes estrangeiros na última década.
No ano letivo 2019/20, existiam 48.649 estudantes internacionais [de grau], dos quais 35.476 (72,92%) provenientes de países da CPLP e Brasil (40,63% do Brasil e 32,29% da CPLP), ou seja, estudantes que falam português.
Dos restantes 13.173 estudantes de outras proveniências (27,08%), 5.608 (11,53%) vem de Espanha, França, Itália e Alemanha, havendo comunidades importantes de luso-descendentes em pelo menos alguns destes países.
"Isto significa que se mantém uma das fragilidades do processo de internacionalização resultante da fraca oferta de ciclos de estudo na língua inglesa", uma questão que, nota, foi abordada nas recomendações de um relatório elaborado pelo Ministério Adjunto e do Desenvolvimento Regional (MADR) e do Ministério da Educação e Ciência (MEC)- publicado em maio passado -, "aparentemente sem grandes resultados".
Já em relação aos desafios enfrentados, o Edulog destaca a burocracia na obtenção dos vistos dos estudantes extracomunitários, "nunca tendo sido implementada a ‘via verde’ proposta pelo relatório MADR/MEC, e a ausência de uma coordenação nacional entre os organismos intervenientes no percurso dos estudantes internacionais".
"Mas também existem dificuldades de recrutamento de estudantes da União Europeia, explicitamente excluídos da aplicação do estatuto do estudante internacional (EEI), o que cria problemas nos concursos de acesso", alerta.
Além disso, "o EEI exclui os estudantes internacionais da contabilização para a fórmula de financiamento e da atribuição de bolsas de estudo (exceto estudantes da CPLP), o que coloca as nossas instituições em clara inferioridade num mercado de ensino superior concorrencial e globalizado", considera.
Sobre os desafios apontados, Alberto Amaral refere que, "com o gradual decréscimo da taxa de natalidade em Portugal, e consequente redução de jovens portugueses a ingressar no ensino superior a médio prazo, torna-se evidente que a internacionalização do ensino superior português passará a ser uma das principais estratégias de suporte à sustentabilidade das instituições, e por isso é imperativo começar a adotar medidas que mitiguem as dificuldades no desenvolvimento internacional do nosso sistema de ensino", defende o mesmo responsável.
Como medidas a adotar, o estudo do Edulog recomenda que "haja um maior investimento no financiamento da investigação académica, de forma a melhorar a visibilidade internacional do país a nível científico", que também "se promova uma oferta formativa em inglês, para atrair estudantes além dos provenientes dos países de língua oficial portuguesa", e que "se crie um ‘visto de estudante’, com base numa burocracia simplificada – tal como já acontece, por exemplo, na Alemanha, Polónia e Suécia".
O "think tank" da fundação Belmiro de Azevedo propõe, ainda, que "se incentive a coordenação nacional entre os diversos organismos intervenientes no percurso dos estudantes internacionais (instituições de ensino superior, embaixadas, a entidade que substituir o SEF e as Finanças)".