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"C’est La Vie". Marcelo prega ao futuro no mercado temporário do Bolhão

Mais de 80 comerciantes vão vender peixe, tripas e hortaliça na cave de um centro comercial, a 200 passos do edifício em obras durante dois anos. O Presidente levou à inauguração a língua dos afectos, usada há décadas no mercado do Porto.

02 de Maio de 2018 às 17:54
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O pequeno santuário a Nossa Senhora da Conceição, iluminado com três velas artificiais e adornado com dois simples arranjos florais, vai continuar a dar as boas-vindas aos clientes do Bolhão. A santinha padroeira de Portugal acompanhou a curta viagem de 82 comerciantes para um mercado temporário, localizado na cave do centro comercial La Vie, onde nos próximos dois anos ficam instaladas as bancas e a alma do centenário espaço comercial do Porto.

 

À quarta parece que é de vez. Depois de não terem saído do papel um primeiro plano de requalificação em 1998 e dois outros desenhados durante os mandatos de Rui Rio, o mais icónico mercado da cidade Invicta está finalmente a ser intervencionado, com a promessa autárquica de ser devolvido à cidade em 2020 como mercado de frescos. O projecto da autoria do arquitecto Nuno Valentim, com empreitada orçada em 22,4 milhões de euros, já assegurou uma primeira comparticipação comunitária de 1,5 milhões e aguarda o resultado de uma segunda candidatura no valor de 7,4 milhões de euros.

 

André Fernandes foi um dos 80 lojistas que aceitaram subir alguns metros na Rua de Fernandes Tomás e ocupar uma banca no espaço temporário com 5.600 metros quadrados, no qual a Câmara gastou 850 mil euros. No total, já que outros preferiram alugar outras lojas ou suspender a actividade durante a obra, foram 98 os que se comprometeram a regressar ao mercado após o restauro. Acompanhado pela mulher e pela filha, que estampou numa camisola para celebrar a inauguração na manhã desta quarta-feira, 2 de Maio, o amolador de 29 anos é o primeiro a contactar com os clientes, ao fundo das escadas rolantes que vêm do exterior. E a desejar que se cumpra a "assinatura" do antigo shopping Gran Plaza: "Comprar, viver, sorrir".

 

Ao início fiquei um bocado ansioso porque aqui é um sítio mais escondido, mas vai correr bem. É um local próximo e quem ia lá também vem aqui. André Fernandes, amolador

 

Oriundo de uma família dedicada a esta arte há mais de meio século – na banca tem as fotos do avô Correia e do pai Frederico José, que o ensinou e que começou a acompanhar com 11 anos –, André Fernandes é um dos mais jovens comerciantes do Bolhão. Afia facas e tesouras a "clientela que vem desde o tempo do pai" e também conserta guarda-chuvas no Inverno. "Ao início fiquei um bocado ansioso porque aqui é um sítio mais escondido, mas vai correr bem. Estou a ver isto pela positiva. É um local próximo e quem ia lá também vem aqui", convence-se o amolador, abordado por muitos que lhe desejam sorte e por outros para pedir ajuda na localização do peixe ou das hortaliças.

 

André Fernandes afia facas e tesouras a “clientela que vem desde o tempo do pai”, que começou a acompanhar com 11 anos.
André Fernandes afia facas e tesouras a “clientela que vem desde o tempo do pai”, que começou a acompanhar com 11 anos. Ricardo Castelo

 

As obras no subsolo, incluindo o desvio de um curso de água e a intervenção nas fundações para criar uma cave de armazenamento, duraram ano e meio e terminaram em Setembro de 2017. A segunda fase da intervenção arranca agora, com seis meses de atraso devido a "querelas legais" entre concorrentes à requalificação, segundo explicou o município liderado pelo independente Rui Moreira, que fez deste projecto uma das principais promessas eleitorais desde o primeiro mandato.

 

No entanto, mais complicadas ainda foram as negociações iniciadas em Setembro de 2014 com os comerciantes, que começaram por chumbar a transferência temporária para este local do centro comercial La Vie em que já esteve o Media Markt e uma mega-loja detida por investidores chineses que acabou na falência. Segundo o JN, para a pacificação contribuiu a garantia dos "direitos históricos" e ainda os 5,6 milhões de euros destinados a suportar despesas de "deslocações", "suspensão ou cessação de actividade" ou eventuais "perdas de facturação" neste período.

 

Foi pena alguns comerciantes andarem a atrasar as saídas. Têm aqui um aconchego tão grande que até vai custar voltar para lá. António Moreira, cliente do Mercado do Bolhão

 

"Foi pena alguns comerciantes andarem a atrasar as saídas. Agora quando for para sair daqui ninguém vai querer porque isto é muito mais agasalhado. Têm aqui um aconchego tão grande que até vai custar voltar para lá", vaticina, pelos corredores, um dos clientes mais antigos do icónico mercado de frescos da Invicta, onde chegaram a trabalhar mais de 400 lojistas. António Moreira, reformado de 70 anos, mora na Prelada mas vai várias vezes à Baixa "para comprar o que a mulher manda". E promete continuar a obedecer lá em casa quando estiver concluída "a obra bonita do outro lado".

 

Longos minutos têm 200 passos

 

Foi no passeio em frente à porta de entrada do edifício original, inaugurado na década de 1940 no coração da Baixa, que Rui Moreira marcou encontro com Marcelo Rebelo de Sousa. A autarquia portuense publicitou os "200 passos" que os dois responsáveis políticos iriam percorrer até ao mercado temporário. "Este é um exemplo de construção do futuro. (…) Temos de encarar o futuro sem ficar presos ao passado", exortou o Presidente da República, que demorou mais de meia hora a percorrer aquela curta distância.

 

O dono da Casa dos Linhos atravessou a rua para lhe oferecer uma toalhinha para o pequeno-almoço. Deu efusivamente os parabéns a uma "jovem com menos dez anos" que dele se abeirou. Correspondeu a um firme aperto de mão de um turista francês – "Bonjour, monsieur President!". Uma senhora de cabelo ruivo a precisar de ir novamente à pintura perdeu a vergonha e pediu-lhe uma pensão de reforma. A comitiva quase abalroou o quiosque de "pipocas gourmet" perto da saída do Metro e afirmaram-se vários profissionais na arte de furar por baixo o círculo de seguranças e repórteres de imagem até invadir a esfera presidencial e conseguir a "selfie" que se fez tradição em Belém.

 

 

Na rua onde até o chão foi pintado para promover a nova localização ou já no interior do mercado temporário, os populares menos afoitos esperaram longos minutos pelo cumprimento ao chefe de Estado. Aliás, Marcelo foi tão demorado a percorrer as bancas que era impossível não ouvir as conversas de quem aguardava e começava a desesperar com a demora e o calor. Entre a defesa esmagadora que ali dava expressão de carne e osso ao máximo tocado nos índices de popularidade, ouve-se num dos grupos um desabafo dissonante: "É igual aos outros. A corrupção continua e ninguém vai preso".

 

Uma das últimas a ser beijada pelo Presidente da República foi Maria Olinda. "Criada" desde os cinco anos no Bolhão, aos 20 tomou conta da sua própria banca e passou a fazer concorrência à mãe. "Naquele tempo ninguém pensava muito nisso. Havia muita gente, eram mais de 40 salsicharias e fazia-se muito negócio. Éramos uns pegados aos outros", recorda a residente na Maia, de 63 anos, que nos próximos dois abandona o 71 para ser vizinha do Toninho do talho e da Cindinha dos Frangos.

 

Maria Olinda “fartou-se de chorar” quando soube que tinha de sair, prometendo voltar ao renovado Bolhão em 2020.
Maria Olinda “fartou-se de chorar” quando soube que tinha de sair, prometendo voltar ao renovado Bolhão em 2020. Ricardo Castelo

 

Vendedora de porco e derivados – frescos, fumados e salgados –, a orgulhosa dona da Salsicharia Lindinha não se esquece da maquilhagem nem de lembrar as duas filhas formadas: uma em Geografia, que trabalha num stand de automóveis; a outra que é nutricionista – "e a mãe é gorda", graceja, numa mescla de gozo e desencanto. Neste espaço temporário há uma cozinha montada para todos poderem preparar os produtos. Para o reabilitado mercado sobra a promessa de que terá uma cozinha própria.

 

Se Deus me der saúde quero muito ir para o meu mercado. Tenho amor ao Bolhão. O Bolhão é a minha vida. Maria Olinda, dona da Salsicharia Lindinha

 

Outra mudança na fase de transição é um horário alargado, de 12 horas de segunda a sexta-feira e aos sábados até às 18h. Sem nenhum funcionário e só com "uma pessoa que ajuda a lavar a tripa se for preciso", diz que "é puxado para quem se levanta às 6h da manhã" e a vida familiar não deixa estar aberta até às 20h. Sobre a mudança, admite que no início "fartou-se de chorar". "Se Deus me der saúde quero muito ir para o meu mercado. Tenho amor ao Bolhão. O Bolhão é a minha vida", acrescenta. Olinda não fala inglês, mas jura entender-se com os turistas, incluindo o casal de japoneses que ali apareceu esta manhã. Fala a linguagem dos afectos, praticada há décadas no Bolhão e popularizada pelo ilustre visitante de Belém.

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