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Um crítico não é uma ETAR ambulante

Há muito que tinha a ideia de desabafar sobre a loucura dos eventos vínicos, mas um SMS às 8h da manhã a pedir a confirmação numa prova que decorreria daí a um mês foi, desculpem o cliché, a gota de água. Ninguém me encomendou o sermão, mas acreditem que aqui funciono como uma espécie de coro grego.

Bruno Colaço
29 de Setembro de 2018 às 19:00
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Atendendo ao tema da crónica, recomenda-se hoje um chá branco Yue Guang Bai, da Chá Camélia. Muito fino, é chinês, de produção biológica e, entre outras coisas, ideal para curar certos excessos, como é o caso da azia. Cada pacote de 50 gramas custa uns €15. Dá para muita chávena.


Como qualquer ser humano, um crítico de vinhos só tem um sistema digestivo, sendo que, por razões imagináveis, o seu fígado faz horas extraordinárias.

Como qualquer ser humano, um crítico tem família, amigos e vida social que não mete necessariamente comida e bebida. Regra geral, aprecia coisas como feriados, fins-de-semana, férias e ociosidade criativa em geral.

Mais facilmente do que outros seres humanos, um crítico sente indisposições gástricas por causa dos infindáveis menus de degustação, que são muito bons para a vaidade dos chefes, mas irracionais para o sistema digestivo do Homo Sapiens urbano.

Como qualquer outro jornalista, um crítico gastronómico precisa de tempo para provar, avaliar, estudar e escrever algo com interesse para o leitor e para os próprios produtores.

E, como qualquer crítico de outra área editorial, há certos dias em que um jornalista gastronómico fica, quando recebe o 5.º convite antes das 10h da manhã para mais uma prova de vinhos ou a viagem pelos irritantes "momentos" de uma carta, fica, dizia, com a vontade de anunciar que abandonou esta vida e que passou a dedicar-se à pesca do cherne entre as Flores e o Corvo. Eu já ando de olho numa traineira. Linda de morrer. Só falta mesmo a massa.

Os sectores do vinho, da restauração e das agências de comunicação não querem, intencionalmente, destruir o fígado ou o estado mental da malta, mas a verdade é que contribuem para isso. Um tipo dá todas as explicações educadas para declinar o convite, mas há certos produtores e agências que, quais lapas, afiançam que vamos perder os melhores vinhos do mundo. Nem se apercebem da figura ridícula que fazem.

Se a imagem não fosse feia, este artigo seria ilustrado com uma fotografia da minha caixa de e-mail para que o leitor pudesse imaginar e avaliar como é possível - primeiro - alguém responder a todos os pindéricos Save The Date e - segundo - seleccionar os eventos mais interessantes do ponto de vista noticioso.

O cenário é tal que alguns responsáveis de agências de comunicação ligam aos jornalistas para saber o que está previsto para dias tal, tal e tal, que é para ver se os eventos que eles têm agendados não chocam com outros da concorrência. Se até há pouco tempo isso era funcional, neste momento é impraticável porque todos os dias há duas provas, dois almoços e três jantares, pelo que é impossível darmos uma ajuda. Uma pessoa perde-se. E já nem os fins-de-semana escapam.

Gosto de viver numa economia liberal, aprecio a dinâmica do sector agro-industrial e da restauração (embora aqui me pareça que a regra é abrir espaços para vender areia no deserto), compreendo que cada produtor cative o maior número de jornalistas e respeito o papel das agências. Mas, se me é permitido, deixo aqui dois comentários e uma sugestão.

Comentário um. Esta coisa de eventos para apresentar novas colheitas de marcas já conhecidas, com almoço ou jantar pelo meio, é um bocadinho como os crepes Suzette feitos à frente do cliente. Aceita-se no Gambrinus porque toda a gente tem carinho pelo senhor Octávio, mas, no geral, é uma chatice e uma perda de tempo. Esqueçam, caros produtores. Poupem o dinheiro e apareçam quando tiverem novidades de peso.

Comentário dois. A ideia de cativar os jornalistas para provas de vinhos nos restaurantes novos ou candidatos a eventuais estrelas Michelin (coisa que excita produtores e agências para ver quem chega primeiro) é um bocadinho parola e cansativa. O caso é tão ridículo que entre alguns jornalistas há uma espécie de "ranking" para pontuar a melhor manteiga de algas, o melhor carabineiro, o melhor caldo asiático, o mais ridículo dos peixes sem pele, o mais intragável naco de veado e a maior batalha de texturas de chocolate. Existe até um prémio para o chefe que consiga meter mais produtos num único prato. Há quem jure já ter visto 15, mas depois só se lembra de quatro ou cinco. Pudera.

Sugestão. Atendendo a que toda a gente faz o mesmo, o produtor que queira destacar-se deveria, na altura do lançamento de novidades de peso, preocupar-se em organizar eventos com carácter didáctico. Poupem o dinheiro nos menus enjoativos, nos "sunsets", nos piqueniques, nos palácios alugados ou nas miúdas bonitas com ar de enfado e a ver quando a festa acaba, e convidem especialistas (portugueses ou estrangeiros) para falar de áreas do sector ou próximas do sector. Organizem eventos que ensinem qualquer coisa sobre castas, história, mudanças climáticas, tendências de mercado, tendências gastronómicas, líderes de opinião, regiões estrangeiras ou novas tecnologias vitícolas ou enológicas. O que for. Façam com que a malta sinta que o evento as tornou mais ricas e mais profissionais na sua área, que isso é bom para todas as partes. Mas, por favor, não tratem um crítico como uma ETAR ambulante.

Em defesa da minha saúde e da saúde de outros camaradas, os meus agradecimentos.


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