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Pias é um rio de vinho sem fim

A crónica da semana passada acabou por não dedicar uma linha à história dos vinhos de Pias não alentejanos – outro embuste nacional. Assim, vamos lá perceber o que é vinho de Pias e outras coisas que exploram o nome de Pias. Só para aguçar o apetite, fique o leitor a saber que existem 159 processos de registo de marca com o selo de Pias.

20 de Outubro de 2018 às 19:00
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Se alguém quiser provar vinhos de Pias que nasceram de facto em Pias, pode procurar a marca Encostas do Enxoé. Sempre podemos tentar perceber a razão de ser do sucesso dos vinhos de Pias. Cada garrafa custará uns 7€.


Em Pias, concelho de Serpa, existirão uns 200 hectares de vinha, mas o vinho com a chancela Pias à venda em Portugal será contabilizado na ordem das largas dezenas de milhões de litros. Isso é assim porque Pias, sendo uma terra alentejana onde existe vinha, não é um nome protegido para a cultura do vinho. É apenas um lugar no Alentejo. O que significa que qualquer cidadão pode registar o que quiser com o nome Pias que não será a Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA) a criar-lhe sarilhos. Estranho? Pois, mas é assim.

Pias é um mundo em que os limites são a nossa imaginação. Dá para tudo. Se um tipo quiser registar uns espargos de Pias, enchidos de Pias, cerveja de Pias, um doce vagamente conventual de Pias, o que for, só será impedido se alguém já tiver feito a coisa antes. Caso contrário, siga a Marinha. Eu próprio ando inclinado a registar umas conservas de peixe biológico de Pias. De achigã, claro, que não sou estúpido.

Há dias, e numa conversa com Francisco Mateus - o presidente da CVRA que nada pode fazer para inverter a situação sem desencadear uma revolução administrativa infindável -, fiquei a saber que, no site do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), existem 159 processos de registos de marcas com o nome de Pias. Sim, 159. Uns aprovados, outros chumbados e outros ainda pendentes. Pias é ouro.

Claro que os leitores gostariam de saber por que razão Pias entrou no imaginário de muitos consumidores como sinónimo de bom vinho alentejano. Pois, mas isso é um caso que exige estudo. Existem opiniões. Mas são isso: opiniões.

Luís Lopes, o director da revista Grandes Escolhas - que, quando era miúdo, acompanhou Michel Giacometti nas suas deambulações etnomusicais pelo Alentejo (as coisas que uma pessoa descobre!) -, acha que Pias se popularizou por via dos alentejanos que vieram habitar as periferias de Lisboa. "Muitos deles, quando regressavam ao Alentejo - alguns em excursões de autocarros -, iam encher garrafões de vinho à adega do senhor Margaça, em Pias, por via de um sistema de enchimento idêntico às mangueiras das gasolineiras. E assim se foi popularizando o vinho de Pias."

Luís Margaça, neto de José Veiga Margaça, fundador da Sociedade Agrícola de Pias (hoje Vinhos Margaça), confirma-nos a história. E, apesar de também não ter uma explicação para o fenómeno, associa a notoriedade mais recente do nome Pias ao sucesso da marca Encostas do Enxoé, o primeiro vinho engarrafado da empresa, em 1988. Curiosamente, este vinho foi um acidente. "A dada altura, o meu avô entendeu que um determinado tinto não tinha qualidade e deixou-o estar num tonel. Passaram-se um ou dois anos e, de repente, o vinho mudou de perfil. Engarrafou-o e, naquela altura, o sucesso desse vinho ficou sempre ligado a Pias. Ainda hoje guardo artigos com elogios rasgados ao Encostas do Enxoé".

De uma forma ou de outra, não se pode duvidar de que, a dada altura, os brancos e os tintos de Pias (se calhar suaves, se calhar perfumados, sabe-se lá) terão agradado a muita gente. Só pode.

Ora, perante toda esta confusão de vinhos de Pias que podem nascer em Espanha ou Itália, como é que os consumidores se defendem? Bom, lendo com atenção os rótulos e contra-rótulos. Neste momento, e segundo Francisco Mateus, existirão no mercado umas sete marcas de vinho com o nome de Pias, e que, como vinhos regionais alentejanos, contêm, de facto, vinhos do Alentejo. Todavia, tais vinhos tanto podem ser de Pias como de Portalegre ou de Arraiolos. Mas lá que terão de ter vinho do Alentejo, isso assim será, porque foram certificados pela câmara de provadores da CVRA.

Em consequência, todos as embalagens ou garrafas com o nome Pias que não tenham o selo de vinho regional alentejano no rótulo tanto poderão ter vinhos das regiões do Alentejo, do Tejo ou de Lisboa como - e há muitos casos - vinhos da União Europeia. Ou seja, vinhos não portugueses e não certificados, rotulados apenas com a categoria Vinho.

Agora que muita gente sente atracção pelos vinhos Bag in Box por razões de preço (são fantásticos para o negócio da restauração), apetece berrar o seguinte para acordar os mais distraídos: quando uma embalagem tem apenas a designação Vinho, isso quer dizer o seguinte: se tiver no contra-rótulo escrito Produto de Portugal é porque tem vinho português (de qualidade questionável, não certificado, mas ainda assim português); mas se tiver escrito "Vinho da UE", tanto pode ter vinho português misturado com vinho de outros países como só ter vinhos de países estrangeiros.

A gente sabe que alguns agentes económicos são manhosos, mas, caramba, o conceito de Denominação de Origem Protegida - uma das melhores invenções da civilização - já tem décadas. E, que se saiba, o analfabetismo quase desapareceu em Portugal. Uma coisa é querermos fazer um bom negócio, outra é acharmos normal comprar um bom vinho quase ao preço da água.

Eu conheço gente que quando compra uma camisa lê com detalhe aquelas irritantes etiquetas coladas nas peças, mas perante um produto alimentar é tirar da prateleira e meter automaticamente no carrinho das compras. Ou seja, o que vai em cima da pele merece cuidado, o que vai para o estômago logo se vê. 


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