Notícia
O outro lado do sonho americano
Este livro ajuda-nos a conhecer melhor a vida e os pensamentos de David Lynch, o criador de "Twin Peaks". Mas é também um olhar sobre o lado sombrio do "sonho americano".
David Lynch & Kristine Mckenna
Espaço para Sonhar
Elsinore, 695 páginas, 2018
Séries como "Twin Peaks" ou filmes como "Mulholland Drive" eram verdadeiros labirintos. Neles, David Lynch fez transparecer todo o universo nebuloso onde sempre viveu criativamente e que, desde os seus primeiros tempos como realizador (basta lembrar "O Homem Elefante"), marcou um rumo. Tentar explicar o que o motiva sempre foi um desafio que se colocou a muitos dos que seguiram esse caminho. Tentar "explicá-lo" e "explicar" o seu trabalho foram, no entanto, actividades complicadas.
É isso que, de alguma maneira, ele tenta fazer (com a colaboração da jornalista Kristine McKenna) em "Espaço para Sonhar", uma mistura de memórias com biografia. Traça a sua vida e, logo no início, parece que estamos a tentar deslindar o seu mundo ficcional a partir da realidade: "A família Lynch vivia numa rua sem saída, onde também moravam muitos miúdos, próximos na idade, e que eram todos amigos." A rua sem saída é quase uma metáfora dos seus filmes e séries.
"Mulholland Drive", de 2001, representa muito do seu imaginário negro, repleto de metáforas, de intrigas que parecem sem sentido, de personagens perdidas, de imagens distorcidas. A sua obsessão, diz no livro, é Marilyn Monroe, a mulher atormentada. Nisso, nada o separa de Alfred Hitchcock. Tudo é escuro. Como quando rodou o seu primeiro filme, "Eraserhead": "O filme 'tinha de ser muito escuro', diz (Frederick) Elmes, que, para se preparar, passou duas semanas a trabalhar com Cardwell, antes de este ter deixado a produção. 'Eu e o David víamos o que tínhamos filmado durante o dia e dizíamos: 'Há um detalhe nesta sombra negra que não devia estar ali. Vamos torná-la mais escura'. Concordámos que a atmosfera do filme era o elemento mais importante."
Desde o início que Lynch queria escurecer o brilho do "sonho americano", que vira nos anos dourados da década de 1950. Viu o nascer do rock'n'roll e foi estudar arte para uma Filadélfia em mudança na década de 1960. E ali encontrou muito mais motivação para o que circulava na sua mente. Segundo o crítico musical Greil Marcus, o trabalho de Lynch é sobretudo acerca da traição ao "sonho americano", como se fosse a sombra de uma luz falsa. E tal foi conseguido ao longo dos anos. Junta-se a isso a sua lógica transcendente que tem muito que ver com a sua devoção à meditação.
Ao longo da obra, seguimos a sua vida, não apenas como criador (na pintura, no cinema, na música). Percebemos melhor o seu universo emocional (quatro casamentos), o que também ajuda a perceber melhor quem é (ou poderá ser) David Lynch. Mas, na realidade, findo o livro, ele continua a ser um grande mistério. E é isso mesmo que ele deseja, escusamos de nos enganar. Como escrevem os dois autores na introdução: "O que aqui se lê é, basicamente, uma pessoa a ter uma conversa com a sua própria biografia."
Se o mundo é um mistério por revelar, a obra (e sobretudo a alma) de Lynch é algo ainda mais nebuloso. Este livro, estimulante, abre algumas janelas para o seu universo, mas deixa também muitas incertezas a todos nós.
Espaço para Sonhar
Elsinore, 695 páginas, 2018
Séries como "Twin Peaks" ou filmes como "Mulholland Drive" eram verdadeiros labirintos. Neles, David Lynch fez transparecer todo o universo nebuloso onde sempre viveu criativamente e que, desde os seus primeiros tempos como realizador (basta lembrar "O Homem Elefante"), marcou um rumo. Tentar explicar o que o motiva sempre foi um desafio que se colocou a muitos dos que seguiram esse caminho. Tentar "explicá-lo" e "explicar" o seu trabalho foram, no entanto, actividades complicadas.
"Mulholland Drive", de 2001, representa muito do seu imaginário negro, repleto de metáforas, de intrigas que parecem sem sentido, de personagens perdidas, de imagens distorcidas. A sua obsessão, diz no livro, é Marilyn Monroe, a mulher atormentada. Nisso, nada o separa de Alfred Hitchcock. Tudo é escuro. Como quando rodou o seu primeiro filme, "Eraserhead": "O filme 'tinha de ser muito escuro', diz (Frederick) Elmes, que, para se preparar, passou duas semanas a trabalhar com Cardwell, antes de este ter deixado a produção. 'Eu e o David víamos o que tínhamos filmado durante o dia e dizíamos: 'Há um detalhe nesta sombra negra que não devia estar ali. Vamos torná-la mais escura'. Concordámos que a atmosfera do filme era o elemento mais importante."
Desde o início que Lynch queria escurecer o brilho do "sonho americano", que vira nos anos dourados da década de 1950. Viu o nascer do rock'n'roll e foi estudar arte para uma Filadélfia em mudança na década de 1960. E ali encontrou muito mais motivação para o que circulava na sua mente. Segundo o crítico musical Greil Marcus, o trabalho de Lynch é sobretudo acerca da traição ao "sonho americano", como se fosse a sombra de uma luz falsa. E tal foi conseguido ao longo dos anos. Junta-se a isso a sua lógica transcendente que tem muito que ver com a sua devoção à meditação.
Ao longo da obra, seguimos a sua vida, não apenas como criador (na pintura, no cinema, na música). Percebemos melhor o seu universo emocional (quatro casamentos), o que também ajuda a perceber melhor quem é (ou poderá ser) David Lynch. Mas, na realidade, findo o livro, ele continua a ser um grande mistério. E é isso mesmo que ele deseja, escusamos de nos enganar. Como escrevem os dois autores na introdução: "O que aqui se lê é, basicamente, uma pessoa a ter uma conversa com a sua própria biografia."
Se o mundo é um mistério por revelar, a obra (e sobretudo a alma) de Lynch é algo ainda mais nebuloso. Este livro, estimulante, abre algumas janelas para o seu universo, mas deixa também muitas incertezas a todos nós.