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A derrocada da paz social coreana

Em "A Vegetariana", a sul-coreana Han Kang não nos conta apenas a história de uma mulher que se torna, de forma radical, vegetariana. Mostra-nos a ruptura das regras sociais vigentes.

24 de Setembro de 2016 às 10:15
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Yeong-hye é aquilo que, para o seu marido sul-coreano, é uma "dona de casa" perfeita. Esposa atenta, boa cozinheira, sem grandes paixões. O seu marido, Cheong, é um empregado medíocre, de poucas ambições, que sempre procurou ambientes educacionais e laborais de qualidade mediana para aí poder sobressair. A vida de ambos é vulgar, sem grandes mudanças, sem algo que os afaste de uma linha comum. Mas, na realidade, todo esse mundo é muito mais frágil do que parece.

Tudo parece estilhaçar-se a partir do dia em que Yeong-hye tira toda a carne do frigorífico, espalhando-a pelo chão da cozinha, e anuncia que vai passar a ser vegetariana. Ela diz que teve um "sonho", e ele foi, na verdade, sangrento e agressivo. Mas o marido não o sabe. Essa violência irrompe no mundo de Yeong-hye quando o seu pai tenta que ela coma um pedaço de porco-doce e a filha responde agressivamente. No fundo, a transferência da essência da sua alimentação para o universo do vegetarianismo é muito mais vasta: vem pôr em causa os pilares da sociedade. O que está em questão, na verdade, é o desafio a um sistema de valores sociais que prevê a devoção à lógica de família, ao conformismo e a um quadro amoroso sem riscos.

Dividido em três partes, o livro apresenta-nos a visão do marido de Yeong-hye, que, a pouco e pouco, se vai apercebendo que o espírito radical da esposa põe em causa a sua carreira e estatuto. Ela não só o embaraça num jantar de negócios como também deixa de usar soutien. A ruptura entre ambos avança sem solução. A segunda parte tem que ver com a ligação sexual entre Yeong-hye e o cunhado, rompendo com regras sociais. A terceira parte é relatada pela irmã de Yeong-hye, In-hye, que vai absorvendo a atracção da irmã pela autodestruição.

Um dos temas que, obviamente, acaba por ser central no livro é o do despojamento, da libertação de tudo o que é supérfluo para além dos ossos. A desnutrição conduz a isso. Tudo isto num meio onde os nomes de cada um pouco importam e os familiares são identificados sobretudo pelo seu estatuto (marido, pai, mãe), mostrando que o estrito código social familiar é sempre mais importante do que a individualidade de cada um dos personagens.

A riqueza deste livro nasce daí. É nesse clima liofilizado que irrompe a violência radical. J. (assim é referido), um pintor que está obcecado por um acto sexual entre um homem e uma mulher de corpos brilhantes num ambiente de silêncio, tenta saltar de uma janela quando se descobre que trai a sua mulher com a irmã desta. A questão da busca da identidade e as formas radicais que são necessárias para o conseguir acabam por ser de uma violência narrativa extrema, colocando-nos defronte de uma sociedade cercada. Yeong-hye caminha rumo à abstenção total. Seja da carne, seja das regras sociais vigentes. No fundo, ela combate a sociedade e as lógicas de humanidade que lhe estão subjacentes. Coloca-se na margem. É um mundo visceral que aqui nos é transmitido de uma forma crua. E é isso que torna este livro poderoso. E incontornável.

Destaques
Sobre o direito de voltar a comungar
Conhecido professor de Direito, Eduardo Vera-Cruz Pinto tem vindo, ao longo do tempo, a desenvolver as suas opiniões sobre o tema da comunhão eucarística dos católicos que, divorciados de cônjuges com quem contraíram matrimónio na Igreja Católica, deles se divorciam e voltam a casar. Este livro, extremamente oportuno e que coloca interrogações muito pertinentes sobre o tema, apresenta ideias fortes para que haja uma revisão da proibição de comungar imposta aos católicos. Tudo feito com argumentos sólidos.

Eduardo Vera-Cruz Pinto
"O Direito dos Católicos recasados à comunhão eucarística";
Vega, 105 páginas, 2016

Histórias à volta do vinho
João Paulo Martins é um dos mais conhecidos críticos de vinhos em Portugal. Além das suas análises às produções anuais, ele tem também desenvolvido muita obra sobre temas que têm que ver com a história deste néctar. No livro, baseado em textos que tem publicado na imprensa nas três últimas décadas, mostra o imenso universo que compõe a história do vinho em Portugal, feita de memórias, de vivências, de momentos de lazer e prazer, de conversas infindáveis que começam neste néctar e que, depois, saltam para outros mundos.

João Paulo Martins
"Histórias com Vinho"
Oficina do Livro, 234 páginas, 2016

As razões do coração que une e divide
A paixão tanto é um factor de união como de desunião. De busca de um sonho e de queda abrupta em precipício. No seu último livro, terminado muito pouco tempo antes da sua morte, o espanhol Rafael Chirbes reflecte sobre a natureza do amor, através das memórias de um homem que relembra a sua paixão por Michel, que hoje está perto da morte. Entre a felicidade quase asfixiante e o choque com a realidade, vai um pequeno passo e isso é descrito de uma forma surpreendente por Chirbes, com uma prosa que deve ser conhecida.

Rafael Chirbes
"Paris-Austerlitz"
Assírio & Alvim, 109 páginas, 2016


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