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Ucrânia: Uma guerra civil sem fim à vista
Depois de um ano de confrontos, a paz continua distante. À Rússia não incomoda este impasse. Que continuará a alimentar enquanto estratégia global de desestabilização europeia.
A guerra civil na Ucrânia prolonga-se há mais de um ano. Sucessivas sanções e acordos de paz depois, aquilo a que muitos ainda chamam de "crise ucraniana" é um conflito cristalizado que já causou pelo menos seis mil mortos confirmados. Muitos deles civis. Classificações à parte, Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), constata que "temos uma guerra aberta na Europa há um ano".
Esta segunda-feira, em Berlim, a já quinta mini-cimeira entre os representantes diplomáticos da Ucrânia, Rússia, Alemanha e França mostrou que "as diferenças entre Kiev e Moscovo ficaram uma vez mais claras", segundo palavras do ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, Frank-Walter Steinmeier. A Ucrânia reitera que Moscovo continua a apoiar as acções militares divisionistas. A Rússia desmente e, esta quinta-feira, o presidente russo, Vladimir Putin, reassegurou que "não há tropas russas na Ucrânia". Esta declaração surgiu depois de o ministro russo da Defesa, Sergey Shoygu, ter acusado Washington e os seus aliados de tentarem colocar Kiev na sua órbita, algo "que não poderia passar em branco". O Kremlin exige o cumprimento integral dos 12 pontos estabelecidos pelo acordo de paz Minsk 2, assinado na capital bielorrussa a 13 de Fevereiro último. Moscovo atribui particular importância ao ponto relativo ao "diálogo nacional" inclusivo entre Kiev e as autoproclamadas repúblicas independentes de Donetsk e Luhansk, tendente a garantir maior autonomia a estas regiões. Putin sustenta que "as autoridades ucranianas estão a perder o Donbass pelas suas próprias mãos".
Apesar de a profusão de notícias relativas às hostilidades entre as forças separatistas e o exército leal a Kiev ter diminuído nas últimas semanas, a verdade é que, decorridos dois meses, o plano Minsk 2 não foi ainda implementado de forma efectiva no terreno e os combates prosseguem na região do Donbass, no Leste da Ucrânia. Também o primeiro cessar-fogo firmado em Minsk, a 5 de Setembro de 2014, fora sistematicamente desrespeitado.
"Os europeus não têm capacidade militar para dissuadir", nem "força para apresentar um ultimato"
diz Loureiro dos Santos.
"Não penso que seja possível alterar muito a situação actual", diz o general Loureiro dos Santos, confrontado com o prolongar dos combates. A explicação para o fracasso da concretização dos acordos de paz está no jogo de interesses de Moscovo. Porque "o cumprimento total e duradouro do cessar-fogo não é do interesse russo", garante Pires de Lima, que enquadra o comportamento do Kremlin no âmbito de "um jogo duplo": Vladimir Putin, ao mesmo tempo que se "apresenta como parte da solução política e militar no quadro de sucessivas rondas diplomáticas, instiga, a espaços, a turbulência no terreno de forma a insuflar mais um 'frozen conflict' na sua antiga zona de influência".
Todavia, a Rússia continua a negar qualquer envolvimento directo no conflito ucraniano. "A participação da Rússia nos tratados passa por negar o que todos garantem acontecer: o apoio russo aos separatistas", afirma Loureiro dos Santos, que justifica este comportamento com a "percepção de que os europeus não têm capacidade militar para dissuadir".
Ora, para o antigo chefe do Estado-Maior do Exército é, precisamente, a inexistência de "força para apresentar um ultimato à Rússia" que leva a Europa a persistir no caminho das negociações que se vêm revelando continuamente insuficientes. Perante o agudizar dos confrontos no Donbass, a chanceler alemã, Angela Merkel, tomou as rédeas europeias enquanto principal defensora de uma solução que passe pela aposta na via diplomática e na alternativa representada pela política de sanções económicas contra Moscovo. No início de Fevereiro, Merkel reuniu-se com o presidente norte-americano, Barack Obama, para tentar evitar que os Estados Unidos enviassem armamento militar defensivo para a Ucrânia, pretensão comum a importantes figuras democratas, republicanas e do Pentágono. Hipótese que resultaria numa escalada de tensão na região, alertou Moscovo. A Alemanha é o principal parceiro económico europeu da Rússia.
Rússia aposta numa estratégia global
Apesar da crise económica acentuada pelas desvalorizações do preço do petróleo e do rublo, a Rússia não deixará de fazer tudo para manter a sua esfera de influência no antigo espaço soviético. O investigador do IPRI antecipa que a atitude "intrusiva" do Kremlin na Ucrânia, Geórgia e países Bálticos permitirá continuar a negociar "Minsk atrás de Minsk, alívios de sanções ou apostar na cartada energética que divide a Europa". Enquanto a estratégia da Ucrânia passa por tentar assegurar a integralidade do território através das sanções ocidentais ou mesmo de um eventual novo reforço da presença da NATO na região, a Rússia aposta numa estratégia global.
No entender de Loureiro dos Santos, "a Rússia está a fazer uma jogada europeia" com o intuito de alargar o seu espaço de influência. O general dá como exemplo o recente tratado de aliança e integração assinado com a Ossétia do Sul. É esta estratégia que leva Putin a referir-se cada vez mais aos "membros da etnia russa" em detrimento da expressão "cidadãos da Rússia". Até a União Euroasiática promovida pelo presidente russo assenta em premissas étnicas para lá dos habituais predicados económicos. Loureiro dos Santos defende que "o objectivo futuro da Rússia são os países Bálticos", região onde, recentemente, a NATO constituiu uma força militar de acção rápida na sequência das manobras russas naquela zona.
Os dois especialistas em Relações Internacionais coincidem na conclusão de que a Rússia quer desestabilizar a Europa. "Por isso apoia economicamente partidos europeus como a Frente Nacional (FN), o Podemos, o Syriza ou o UKIP", realça o ex-ministro da Defesa, que aponta o recurso a "vários vectores, desde a informação à economia, passando pelo gás e pela diplomacia", como exemplificativos da "natureza não exclusivamente militar" da estratégia adoptada por Moscovo. "Este patrocínio financeiro russo a partidos extremistas europeus é especialmente preocupante no caso da FN pelo impacto que pode ter nas presidenciais de 2017", teme Bernardo Pires de Lima.
A estratégia global russa poderá prolongar a situação vivida na Ucrânia. É do interesse de Putin continuar a jogar em dois tabuleiros.
Esta estratégia global russa poderá implicar um arrastar no tempo da situação na Ucrânia. Para a Rússia ditar os acontecimentos nas suas zonas limítrofes, "basta patrocinar ou apoiar oficiosamente" as forças separatistas, lembra Pires de Lima. Até porque, com a deterioração da economia ucraniana, as reformas impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em troca de apoio financeiro, "levarão anos a concretizar e provavelmente acentuarão crises sociais antipoder". O que poderá beneficiar os partidos pró-russos. Loureiro dos Santos sustenta que "a Rússia pode e irá jogar com isso", sabedora de que "a reviravolta na Ucrânia só pode acontecer de duas formas": novas eleições ou através da violência.
Putin deverá continuar a jogar em dois tabuleiros, o que "serve em termos da popularidade interna e sustenta a tentativa de reafirmação internacional" do Urso Russo, admite o analista do IPRI. E, tendo em conta que "à Rússia não interessa partir a Ucrânia ao meio", como diz Loureiro dos Santos, Moscovo poderá, antevê Pires de Lima, "contentar-se em fazer, no Donbass, o que fez na Geórgia e na Moldávia: acautelar a sua posição 'ad eternum', condicionando a política interna desses países e a sua integração nas organizações ocidentais".
Para já, Putin tem levado avante as suas intenções de reafirmação da Rússia enquanto potência regional zeladora do seu espaço tradicional de influência. A revista The Economist escrevia esta semana que a influência russa é cada vez mais sentida em Kharkiv, a segunda maior cidade ucraniana. Mais importante, a historicamente russa Crimeia já foi anexada e parece que é um dado adquirido.