Notícia
Teatro: Fronteiras degoladas
Jogo de transparências com várias camadas. Judite regressa do Antigo Testamento para questionar as linhas territoriais da actualidade. Fraqueza transformada em força no novo trabalho de Rui Catalão.
Nas raízes bíblicas está Judite. Ela que ousa ultrapassar a linha do exército invasor. "Hoje aquele território representa a Síria e a zona do Iraque". No outro lado da barricada, o general Holofernes. Mal ele desconfiava que perderia literalmente a cabeça naquela noite de bebedeira.
Judite está em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, até 27 de Março. É um novo texto, com respeito pela sinopse original perpetuada no Antigo Testamento. Rui Catalão trabalha-o em três camadas sobrepostas: a bíblica, a autobiográfica, a contemporânea.
"O período histórico que estamos a viver tem ressonâncias com a história original. Durante muito tempo não andámos a dar grande atenção àquela zona do Médio Oriente. De repente, somos outra vez obrigados a fazê-lo". Estado Islâmico, refugiados, conflitos. "Aquela zona volta afectar todo o equilíbrio geoestratégico e o nosso próprio território". A Europa é obrigada a pensar a forma como se representa.
O encenador vai além: o problema atinge todo o sistema de valores. "O que temos estado a ver nos últimos meses é nós a abdicarmos dos nossos valores e do discurso que tínhamos sobre eles. Não só estamos a extremar posições como a abandonar uma série de valores que fundaram a Europa". Novo abanão com reminiscências do passado.
"Estávamos muito confortavelmente nas nossas fronteiras, nos nossos valores, com o nosso dinheiro e sentido humanitário". Tudo parecia estável. De fora para dentro, um acontecimento rasga o sistema e fá-lo sucumbir naquilo que o tornava forte. A lista de regressos é longa para Rui Catalão. Racismo, xenofobia, falta de solidariedade, pequenos interesses e desconfianças. "Expôs a que ponto são superficiais os valores de que nos andávamos a engalanar nas últimas décadas".
A história não se repete com os mesmos ingredientes. Nem Judite, figura que inspirou múltiplos artistas ao longo dos séculos. Neste palco, a sua dimensão psicológica é mais explorada. A sua sedução, uma arma de guerra. "É mais uma provocação que faço aos valores do feminismo. Interessa-me muito o lugar da mulher na sociedade contemporânea".
"A minha Judite tem que trabalhar bastante, ser persuasiva. Ela conhece os textos bíblicos, apresenta a sua cultura ao inimigo e chega a fazer sugestões de traição, quase que a vender ao inimigo o seu próprio povo". Só assim consegue degolar Holofernes. A Judite de Rui Catalão é a personificação de um "povo fraco que, não podendo lutar, encontra nesta degolação uma forma de desmoralizar o exército inimigo". É também a prova de que as mulheres podem arranjar estratégias próprias numa arena onde muitas vezes se limitam a replicar o "modus operandi" masculino.
"Até que ponto não existirão estratégias femininas que, parecendo mais submissas, acabam por ser mais eficazes quando o adversário é ele próprio um homem?". A pergunta é deixada pelo encenador que outrora foi jornalista. Mudança de vida sem arrependimentos.
"Só a partir dos 30 anos comecei a fazer teatro. O que vejo hoje é que a produção teatral no país nunca foi tão rica. Estou também a falar de quantidade, mesmo num contexto necessitado de apoios financeiros". Rui Catalão está de pedra e cal, para dar força à corrente, a um exército que não quer ser derrotado.
Judite
Texto de Rui Catalão
Encenação de Rui Catalão
Interpretação de Ana Guiomar, Cláudia Gaiolas, Tiago Vieira, Rui Catalão
Onde: Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa
Quando: 10 a 27 de Março
Quanto: 12 euros, com descontos aplicáveis