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Srecko Horvat: Os sociais-democratas abriram caminho aos fascistas que estão a chegar

Srecko Horvat é um dos filósofos e activistas mais destacados da nova esquerda europeia. Discípulo de Slavoj Žižek, com quem escreveu o livro “O Que Quer a Europa”, lançou agora “The Radicality of Love”, onde fala sobre amor, política e revolução.

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É apontado como uma das vozes mais carismáticas da sua geração, uma "rising star" da nova esquerda europeia. Srecko Horvat nasceu em 1983 na Jugoslávia pós-Tito e é hoje um dos filósofos e activistas mais destacados no cenário europeu. Discípulo do cientista social esloveno Slavoj Žižek, com quem escreveu o livro "O Que Quer a Europa?", Horvat colabora com o ex-ministro grego Yanis Varoufakis e é co-fundador do DiEM25 - Movimento Democracia na Europa 2025 -, subscrito por nomes como Noam Chomsky e Brian Eno. Autor do livro "The Radicality of Love", o filósofo croata esteve em Lisboa, a convite do Teatro Maria Matos, para participar no ciclo Arquipélago dos Afectos. Com o título "Utopia do Amor: um regresso à política radical?", a conversa centrou-se no papel do amor na política actual e na forma como o Brexit ou a eleição de Trump estão a trazer de volta a paixão que a política tinha desleixado.


Qual o papel do amor na política e no fazer político? Estará ausente da esfera política? Será uma utopia pela qual ainda vale a pena lutar? É sobre isso que fala o livro "The Radicality of Love", de Srecko Horvat. O filósofo nasceu na Jugoslávia pós-Tito, cresceu na Alemanha, país de exílio do pai, regressou ao território croata e estudou Filosofia na Universidade de Zagreb. Escreveu os livros "Against Political Correctness" (2007) e "After the End of History: From the Arab Spring to the Occupy Movement" (2013), colabora com jornais como o The New York Times e The Guardian e é autor da série documental "Europe’s Forbidden Colony", na qual retrata a crise de identidade da Europa. Fala de um revisionismo histórico que estará a trazer aos dias de hoje a versão pós-moderna dos anos 30. Em Março, a um mês e meio das eleições francesas, Srecko Horvat esteve em Portugal para falar de amor, de política e de revolução. Numa entrevista de 30 minutos, o filósofo diz que as esquerdas europeias falharam no seu papel de escuta das emoções das pessoas e que essas emoções foram tomadas por movimentos nacionalistas e populistas. Não está optimista em relação à Europa.

 

Escrever ou falar sobre amor é difícil e as palavras são sempre insuficientes, diz no seu livro "The Radicality of Love". Falamos pouco sobre amor?

Fala-se de amor todos os dias na televisão, nas revistas e nos grandes "blockbusters" de Hollywood mas isso não é, realmente, falar de amor. O amor foi capturado pelo capitalismo, tal como todas as esferas da vida humana. Basta olharmos para o Facebook ou para aplicações como o Tinder ou Grinder, que reduzem o amor a um produto do mercado livre. Os seus utilizadores definem os critérios do parceiro "ideal" e recorrem a uma espécie de "outsourcing" do amor. É curioso observar a utilização de expressões económicas, como terceirização e subcontratação, na esfera das emoções. Hoje, as grandes companhias tecnológicas de Silicon Valley utilizam a inteligência artificial para saber tudo sobre nós, até mais do que nós próprios, metem-nos em caixinhas e indicam-nos um parceiro à medida, também ele rotulado, de tal forma que já o "conhecemos" antes de o conhecer.

 

Mas não foi sempre um pouco assim? A "lei do mercado" não existiu sempre? Estas aplicações não poderão funcionar como um "desbloqueador"?

Com a subcontratação do amor, desaparece o factor-surpresa. O elemento essencial do "fall in love" é precisamente o "fall". Não sei se em Portugal existe alguma expressão semelhante que remeta para a ideia de queda quando nos apaixonamos – perder-se de amores –, mas um dos elementos da paixão é precisamente o terreno da incerteza. As pessoas têm medo de se apaixonar porque, quando se apaixonam, perdem algum controlo. Com as agências de namoros e serviços de "outsourcing", a questão da incerteza desaparece um pouco. Antes de um encontro, já sabemos o tipo de música que a outra pessoa gosta ou os filmes que vê. O pensamento económico invadiu o terreno do amor. Por outro lado, pelo facto de o amor ser tratado como um produto, assim que existe um problema na relação, rapidamente desistimos dela e vamos ao mercado procurar outra pessoa que encaixe nos nossos critérios. Perde-se um pouco a ideia de fidelidade, e não falo em fidelidade no sentido clássico e conservador, falo na ideia do amor tal como tem sido abordada na teologia e na filosofia, por teóricos como Kierkegaard, que escreveu "Works of Love" ("As Obras do Amor"). O amor implica sempre um trabalho de superação de conflitos. Assistimos a uma economização do amor.

 

A economia a matar o amor. Precisamos de reinventar o amor? É uma utopia pela qual vale a pena lutar? E qual o papel do amor na política? 

O amor é uma categoria essencial da política e poucas pessoas, inclusivamente da esquerda política, têm consciência disso. Se olharmos para a Revolução Francesa ou para a Revolução de Outubro de 1917 ou mesmo para a Revolução de 1968, o amor e a paixão foram sempre ingredientes essenciais desses acontecimentos. Não é possível uma transformação social sem uma alteração na esfera emocional. Os afectos e as emoções estão sempre presentes. Hoje observamos um retorno da paixão à política, sim, o problema é que esse retorno está a ser feito pelos movimentos de extrema-direita e populistas. São estes movimentos que estão a conseguir captar a paixão das pessoas. Vimos isso acontecer com a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos e com o florescimento de movimentos de extrema-direita e populistas como os de Marine Le Pen em França ou de Nigel Farage na Grã-Bretanha. Assistimos ao retorno da paixão à política como resultado de uma crise política, social e moral, que deixou as pessoas frustradas e inseguras, mas os seus sentimentos foram captados pelos movimentos populistas e de extrema-direita.

 

O desafio da esquerda é tornar-se popular e não populista. (...) A esquerda perdeu a capacidade para dialogar com os trabalhadores.

 

E os partidos de extrema-esquerda, como o Podemos ou o Syriza, não fizeram isso mesmo?

O Podemos, de facto, utilizou a raiva dos Indignados, mas se observarmos a maior parte dos países europeus, a raiva e a frustração das pessoas estão a ser usadas sobretudo pela direita populista. E é por isso que penso que a esquerda, os liberais, os sociais-democratas, e os democratas progressistas deveriam focar-se mais na paixão e nos afectos na política. Aquilo que tento mostrar no meu livro "The Radicality of Love" é que o amor fez sempre parte das revoluções mais importantes da História. Gosto realmente do período da Revolução de Outubro – no início, houve uma espécie de revolução paralela dentro da grande revolução, uma revolução sexual na família, no trabalho e nas relações...

 

Está a referir-se ao conceito de "free love" de Alexandra Kollontai?

Sim, mas quando as pessoas ouvem falar de amor livre, pensam de imediato numa espécie de imaginário "hippy", que eu nem gosto particularmente. Quando falo em radicalidade do amor, refiro-me a outra coisa, não a uma noção simplista e materialista do sexo. Alexandra Kollontai – feminista, militante bolchevique e dirigente soviética – lutou desde cedo contra a opressão sexual vivida pelas mulheres e, com a Revolução de Outubro de 1917, tornou-se a primeira mulher da História a integrar como "comissária do povo" (ministra) um Governo, numa pasta que equivaleria hoje ao Ministério da Solidariedade Social, criando uma espécie de Estado Social "avant la lettre". Tudo isto aconteceu antes da vaga reaccionária da Revolução de Outubro, que levou ao retrocesso das medidas tomadas por Alexandra Kollontai. Ela também desenvolveu o conceito de "free love" de uma forma mais conceptual, definindo­-o como uma nova moral sexual, libertadora. Não se trata do conceito de amor livre apropriado pelo capitalismo, era algo muito mais radical.

 


O capitalismo também se apoderou de movimentos como o Occupy Wall Street?

Sim, mas isso pode ser explicado pelo falhanço do Occupy Wall Street. Eu estive lá e, em conversas com várias pessoas, percebi que o principal dilema era se se deveria enveredar pela chamada democracia directa – na altura, existia um grande entusiasmo em torno da questão da horizontalidade política, havia a ideia de que a verdadeira revolução no tempo da crise da democracia representativa seria a democracia directa – ou pela criação de um novo partido político. Este último caminho foi seguido em Espanha pelo Podemos, partido que não existiria sem os Indignados, e na Grécia pelo Syriza, que não existiria sem o entusiasmo da população nas praças. Já nos Estados Unidos, foi Trump que se apropriou do discurso do movimento Occupy Wall Street, do discurso dos 99% de pobres contra o 1% de muito ricos. Utilizou essa narrativa, argumentando que iria destruir o sistema – ainda que ele próprio pertencesse ao sistema – e usou a raiva e a frustração da população, e o Partido Democrata subestimou tudo isso. Se Bernie Sanders tivesse sido o candidato democrata, e não Hillary Clinton, encarada como símbolo do sistema, os Estados Unidos viveriam hoje uma realidade muito diferente.

 

O Syriza também se "apropriou" do sentimento da população. Como olha hoje para o partido?

Tenho uma relação demasiado pessoal em relação a este tema, não só porque trabalho com Yanis Varoufakis, mas também porque era amigo de Alexis Tsipras.

 

Já não é amigo de Alexis Tsipras?

Bem, já não falamos desde essa altura. Encontrámo-nos pela primeira vez em Zagreb, em 2013, ainda ele não era primeiro­-ministro, apoiei-o e apoiei fortemente o Syriza até ao referendo de 2015, mas penso que Tsipras cometeu um erro depois do referendo, quando transformou os 62% de votos contra as medidas de austeridade num programa oposto. Rendeu-se e assistimos depois à privatização do porto do Pireu, à concessão dos aeroportos, a tudo aquilo que está no chamado Terceiro Memorando, o que significa que o actual governo do Syriza agiu contra o Programa de Salónica, quando a população nacional queria esse mesmo programa. A verdade é que a soberania nacional está em causa quando estamos sujeitos a instituições como o FMI e o Banco Central Europeu. Por isso é que lançámos o DiEM25, movimento pan-europeu de cooperação transfronteiriça dos democratas. Acreditamos numa Europa a uma velocidade, e não a várias velocidades, algo que agora estão a tentar formalizar.

 

Mas essa opção não deveria ser pelo menos escrutinada, como sublinhou o presidente da Comissão Europeia, Jean­-Claude Juncker?

O discurso das diferenças foi o discurso da ideologia dominante utilizado, por exemplo, durante a crise grega. Argumentava-se que os gregos eram preguiçosos. Ora, isso é um discurso ideológico, a estatística mostra que os gregos trabalham mais horas do que os alemães. Eu colocaria outra questão: será que queremos viver numa Europa com a Hungria de Viktor Orbán, com o Brexit de Theresa May, com a França de Marine Le Pen, com os refugiados a serem bloqueados por várias fortalezas? O DiEM25 não tem soluções mágicas, tem soluções racionais e por isso é que lançámos o European New Deal, uma tentativa de criar uma solução pan-europeia para os problemas, assente em princípios tais como a ideia de que todos os cidadãos devem ter direito a um emprego digno, acesso a habitação, educação e a cuidados de saúde.

 

Criaram este movimento pan-europeu porque as esquerdas falharam? Podemos falar no "falhanço" das esquerdas?

Sim, claro, mas quando falamos em esquerda, eu entendo-a num sentido lato. Incluiria na esquerda os sociais-democratas e foram os sociais-democratas que abriram caminho aos fascistas que hoje estão a chegar, foi a social-democracia que realmente não mudou o capitalismo, pelo contrário, fez um pacto com ele, foi a social-democracia que implementou as medidas de austeridade. Olhemos para François Hollande e para a sua lei do trabalho. Com estas medidas, teremos sempre raiva e frustração por parte da população, que acaba a apoiar Le Pen e Farage. Este foi um dos falhanços da esquerda. Por outro lado, a esquerda perdeu a capacidade para dialogar com a classe trabalhadora, vimos isso acontecer com o Brexit e com a vitória do Trump. Foi o populismo que conseguiu comunicar com os trabalhadores frustrados. Tendemos a demonizar a classe operária, achando que são todos fascistas e estúpidos. A verdade é que não foram ouvidos pelas esquerdas.

 

Assistimos ao retorno da paixão à política, o problema é que esse retorno está a ser feito pelos movimentos populistas e de extrema-direita.  

 

Diz que as esquerdas europeias não captaram as emoções das pessoas, mas usar a emoção na política pode ser perigoso, isso viu-se e vê-se. Usar a "voz do povo" é sempre perigoso, seja por parte da direita, seja por parte da esquerda.

Eu sou muito relutante em falar sobre populismo. Há umas semanas, debati a questão com Chantal Mouffe – cientista política pós-marxista, conselheira de Jean-Luc Mélenchon, que defende ‘um populismo de esquerda para recuperar a democracia’. Eu resisto a utilizar esse termo, o desafio é a esquerda tornar-se popular e não populista e resistir a isso ao populismo. Dei um exemplo de quando Yanis Varoufakis foi convidado pela BBC para um debate com Nigel Farage e decidimos que tal seria uma má escolha, porque é precisamente isto que o sistema quer: colocar Farage e Varoufakis no mesmo cesto, tal como colocam Pablo Iglesias e Marine Le Pen no mesmo saco, e isto é muito nefasto para o movimento de esquerda progressista que não tem nada em comum com a ala da direita xenófoba nem com o nacional-socialismo. 

 

Como olha para a Europa pós-Brexit? Como o início da desintegração da UE?

Diria que a desintegração da União Europeia começou antes do Brexit e o Brexit foi um sintoma dessa já existente desintegração, mas que definitivamente é um dos marcos desse desmantelamento e um prego no caixão da Europa. O golpe final acontecerá se Le Pen chegar ao poder em França. Tal seria o fim da União Europeia. Não estou optimista de todo quando olho para a Europa e vejo não apenas o Brexit mas os milhares de refugiados, a situação na Turquia, o terrorismo em Bruxelas, Paris, Nice, Berlim, as medidas de austeridade, as estatísticas de desemprego, o crescimento da economia chinesa que está a transformar a geopolítica mundial... Se juntarmos todas estas questões, temos um mapa a apontar para uma direcção muito perigosa, diria até para uma situação de guerra.

 

E como reverter a situação? A solução seria voltar a "uma Revolução de Outubro"? O mundo é outro e a globalização está para ficar.

Podemos olhar para trás e ser influenciados por coisas boas que foram alcançadas, mas é verdade que o mundo é outro e temos de ter em consideração que vivemos no século XXI, que temos Silicon Valley, temos tecnologia e robôs a trabalhar, a automação está aí. Temos de nos ajustar ao futuro e não ao passado, vamos começar a pensar em novas formas de rendimento. Nessa medida, temos de retirar o melhor dos exemplos históricos e juntá-lo ao contexto actual. Não podemos voltar ao comunismo do século XX, acreditamos no internacional progressismo, seria muito perigoso voltar aos Estados-nação, quer à direita quer à esquerda, mas estou muito assustado com a forma que o mundo está a tomar, temos muitas pequenas ilhas a competir entre si e, quando temos muitas ilhas a competir, o único resultado é a guerra.

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