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Salomé Lamas: Gosto da ideia do realizador como alguém que traduz

"Fatamorgana" é o mais recente projecto de Salomé Lamas e explora o Médio Oriente como lugar de conflito de identidades, de linguagens, de histórias e de Histórias. É um projecto ambicioso, como têm sido os filmes da realizadora premiada. O espectáculo pode ser visto hoje no CCB.

Miguel Baltazar
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Em "Fatamorgana", Salomé Lamas põe uma série de figuras a falar. Pessoas que mudaram o mundo: para melhor ou para pior. Talvez mais vezes para pior. Pessoas que foram mudadas: vítimas do poder dos outros. Talvez seja preciso continuar a falar, mesmo que continuemos a não nos entendermos. "Fatamorgana" é o mais recente projecto de Salomé Lamas e explora o Médio Oriente como lugar de conflito de identidades, de linguagens, de histórias e de Histórias. "Fatamorgana" será um filme, mas para já é um espectáculo, o seu primeiro trabalho para palco, parte da bienal BoCA, e pode ser visto hoje no CCB. É um projecto ambicioso, como têm sido os filmes de Salomé Lamas. Menina-prodígio, realizadora premiada, considera-se sobretudo uma tradutora da realidade. Uma tarefa que nunca ficará completa.

1. Em Agosto de 2016, fui ao Líbano. Sempre tinha querido ir ao Líbano e talvez em retrospectiva, um dia, eu pense sobre o que é o Líbano para mim, mas naquela altura ia focada no que precisava de fazer para o projecto "Fatamorgana". Fui logo depois de acabar de rodar uma curta-metragem. Tinha duas semanas até ter de começar a montar a curta. Não tinha quase tempo para respirar, por isso fui ali com uma missão. Fui ali ver como é que o texto que estava a ser escrito [em colaboração com Isabel Ramos] seria lido naquele sítio. Porque nós não somos dali e queria perceber se o texto também era elegante ali - e imparcial.

Falei com várias actrizes. Falava cerca de meia hora com elas e discutíamos o texto. Queria perceber como é que elas viam o texto e que pertinência tinha para elas.

Há uma situação em que uma delas tenta descrever a "democracia". Brinca, fala de um mundo ideal, remonta à Grécia Antiga, começa a contar uma história de fadas. E, depois, conta isto: "Houve um tempo em que vivi em França e foi-me pedido para representar alguém numa reunião de condóminos em Paris. Depois de as pessoas falarem, alguém disse: então, vamos votar. E votámos. Foi a coisa mais bonita que me aconteceu. Foi o único momento em que senti a democracia."

Falámos sobre o que significa a palavra democracia, mas também sobre questões de identidade, sobre conflito, ou sobre a ideia de religião. Eram todas mulheres que tinham emigrado, que eram fluentes em várias línguas, cujos filhos estavam ou não emigrados, e todas tinham vivido a guerra.

Uma contou que viveu em Adonis e que, a um determinado momento, sob ataque, juntaram-se todas as pessoas do prédio no corredor. Ouviram um impacto e perceberam que foi no edifício ao lado. É um tipo de experiência que não se consegue esquecer.

Outra contou que estava nos Estados Unidos no 11 de Setembro. Estava na faculdade. O professor disse-lhes que, em vez de dar a aula, deviam falar sobre o que estava a acontecer: "Let's talk about it." "Let's talk about it?", disse ela. "Eu não quero falar sobre isto." O professor apontou para ela e perguntou: qual é o significado de "talibã" e ela disse: "estudante". Ela era a única árabe na sala. E há alguém na sala que começa aos berros: "Toda a gente vos mate!"

Na aula seguinte, a professora também diz: "Let's talk about it." Ela acabou por falar da experiência que tinha tido na aula anterior. E os colegas dela abraçaram-na. E ela acaba por dizer que se calhar precisava mesmo de falar e depois liga isso com o facto de ter vivido a guerra no Líbano quando era mais nova. Diz: "Ninguém disse 'let's talk about it' quando a minha casa foi bombardeada. Os meus pais não me sentaram e disseram: 'Let's talk about it.' Porque os meus pais tinham outras prioridades. Só tive consciência do trauma quando ouvi foguetes nas celebrações do 4 de Julho. Se calhar o trauma é ver imagens na televisão, ver alguém a levar um tiro e sentir que a bala daquela pessoa está em ti."

2. Embora a Hanan, que é a personagem principal [da peça "Fatamorgana"], seja uma personagem de ficção, todas as outras figuras têm um peso documental.

Existe uma série de museus da cera no Líbano. Algumas figuras mexem-se, outras não, umas são de silicone, são todas muito "kitsch". Ao mesmo tempo fazem pensar sobre a ideia de museu, sobre a nossa tentativa de seleccionar e preservar a História, uma memória colectiva. Mas quem faz a curadoria do museu? Porquê aquelas figuras e não outras? Encontramos não só políticos como outras personalidades: o Khadafi ou o Mubarak ou o Clinton ou a Sabah, que é uma estrela pop do Médio Oriente que faleceu há alguns anos.

Todas as figuras que integram o "Fatamorgana" são retiradas do Hall of Fame nos arredores de Beirute. E estas personagens dialogam todas entre si. É como se os sentássemos todos à mesma mesa, fechássemos a porta e fizéssemos de conta que ninguém está a ouvir.

Cada um fala a sua língua de origem. Há uma multiplicidade de línguas e ninguém se percebe. Da mesma forma, a Hanan não percebe estas personagens. Ela ouve, mas não compreende e acaba completamente desarmada. Embora no início ela queira cuidar das figuras, limpá-las, compreendê-las, vai ficando cada vez mais cansada. Ao mesmo tempo que percebe que o marido dela não vem. Ao mesmo tempo que ainda acredita que o filho vai regressar. O filho saiu de casa para a guerra e nunca mais regressou. Ela é uma espécie de Penélope ou de Molly Bloom, naquele monólogo interior, em Ulisses.

3. Se calhar é uma história que conto a mim mesma, não sei, mas faço uma diferença [de idades] muito reduzida dos meus familiares, e era sempre a única criança. Como eram jovens, eu era sempre levada para todos os lados. Era aquela criança que adormecia à mesa, que ficava a ouvir as conversas dos adultos. Nunca tive um "generation gap". Se calhar sentia mais um "generation gap" com os meus colegas na escola. Acho que tentei coleccionar, muito cedo, conhecimento para poder fazer parte daquelas conversas. Criava listas: de filmes vistos, de livros lidos, quase como uma coisa enciclopédica. Houve uma altura que tive uma paixoneta pelo Joyce e li tudo o que o Joyce escreveu. Se percebi o Ulisses com 15 anos? Provavelmente não, mas dava-me gozo.

4. Comecei a utilizar a palavra paraficção como uma bengala. Quando começas a fazer coisas as pessoas tentam catalogar-te. Mas é complicado ficarmos presos a essas gavetas. Talvez tenha tentado encontrar um nome que enquadrasse aquilo que fazia antes, aquilo que estou a fazer e aquilo que virei a fazer. O que é transversal a todos os projectos é uma ideia de tradução.

Vejo o cinema de não ficção ou paraficção como uma tradução da realidade. Gosto da ideia do realizador como alguém que traduz, que transporta a linguagem das coisas na linguagem cinematográfica. E, para a tradução ser boa, não vai dizer o mesmo que o original. Vai ser autónoma. Se calhar, é dos pouco sítios onde conceitos como a liberdade e a fidelidade andam de mãos dadas.


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