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Saberão as personagens da mesma actriz umas das outras?

Carmen Dolores. São 94 anos de vida e 70 anos de carreira. A mesma mulher, dezenas de personagens. E uma homenagem a tamanha dedicação à arte de representar.

Filipe Ferreira
28 de Julho de 2018 às 13:00
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É costume dizer-que as homenagens devem ser feitas em vida. No caso de "Carmen", não só o lema é seguido com rigor como a homenageada é chamada a contribuir para o espectáculo. Desengane-se quem pensa que Carmen Dolores volta a subir ao palco do Teatro da Trindade, onde se estreou em 1945.

 

Inevitavelmente, esta é a sua história. Cabe-lhe também escolher a actriz que irá representá-la. Natália Luíza entra num monólogo de uma hora para trazer as memórias do livro "Vozes dentro de mim", escrito por Carmen Dolores. É uma corrente interminável de locais, actores, autores e personagens que marcam 70 anos de carreira e 94 anos de vida. Porque o teatro é uma arte de rede, por muito que se insista nas ideias de vedetas ou "monstros sagrados".

 

Natália Luíza oferece expressões familiares às da sua retratada, bem como um tom amigo, confessional, ao desfiar as recordações de uma das mais reconhecidas actrizes portuguesas: Carmen Dolores, inesperado mas destinado nome de cartaz. "Até detestava Dolores", reconhece. Há uma certa infantilidade, uma ingenuidade no relato, como se cada história fosse uma feliz descoberta sem precedentes.

 

Tudo começou aos 14 anos, com os poemas recitados na rádio. António Lopes Ribeiro convidaria depois Carmen Dolores para "Amor de Perdição", que marcaria o seu arranque no cinema em 1943. Aí se julgava confortável, até que o realizador a chama para o elenco dos Comediantes de Lisboa. Estreou-se na sala principal que, hoje, ganhou o seu nome. Até essa distinção acolheu com humildade, reconhece Diogo Infante num texto que lhe dedica.

 

Neste palco, os figurinos de diferentes personagens envolvem Natália Luíza. São as personagens interpretadas por Carmen Dolores. Tchekhov, Brecht, Strindberg, Shakespeare ou Woolf foram as mentes por trás desses enredos. A certa altura, questiona-se: "as personagens criadas por um autor saberão uma das outras?". A inquietação alastra-se para o universo de uma actriz como Carmen Dolores: o que existirá da própria mulher quando ela passou a sua vida a interpretar outras histórias que não a dela mesma?

 

"Carmen" não é um projecto marcante para quem o assiste. As lógicas da encenação, da partilha com o público, são até bastante tradicionais: uma actriz socorre-se dos elementos da cenografia para que o monólogo não seja tão solitário e não pareça tão longo. Contudo, "Carmen" não deixa de ser um trabalho importante, pela capacidade de reconhecer quem tanto deu de si ao teatro, ao cinema, à rádio e à televisão, sobretudo em tempos marcados pela falta de liberdade e censura.

 

É uma peça que procura não hierarquizar o público, tirando a lição da primeira vez que Carmen Dolores assistiu a uma peça no Teatro Nacional D. Maria II: fê-lo do último balcão, do chamado "galinheiro". E aprendeu que, tal como a dela, a vida de alguém pode mudar para sempre com o que se passa no palco. Mesmo lá no topo, há essa beleza do instante, sempre tão efémero, mas com um poder duradouro.

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