Notícia
Richard Zimler: Trump representa a estupidificação da sociedade americana, é um perigo.
Está longe do seu país há quase 30 anos, mas Richard Zimler continua atento ao que se passa nos EUA. Quando Trump foi eleito ficou doente. Para o escritor só há uma maneira de evitar que “demagogos” e “racistas” cheguem ao poder – apostar na educação pública.
Já se sente em casa em Lisboa?
Sim. Curiosamente, conheci Lisboa antes do Porto. Nos anos 80, estávamos a viver na Califórnia, na zona de São Francisco. O Alexandre dava aulas durante duas ou três semanas no Verão no Porto, mas ficávamos pelo menos uma semana em Lisboa para estar com o pai dele. Então eu conhecia Lisboa como visitante. O que era importante para mim agora, nesta nova fase da nossa vida, era arrendar um apartamento. Eu não ia viver num hotel durante quatro anos. A única coisa que me falta aqui são os meus livros, porque tenho milhares e milhares de livros, incluindo muitos que utilizo para pesquisar os meus romances.
A entrada do Alexandre Quintanilha na política foi algo muito pensado e discutido pelos dois?
Foi, foi muito pensado. Porque já não somos crianças. Eu tenho agora 61 anos e o Alexandre tem 71 anos. No Verão de 2015, o António Costa pediu ao Alexandre para considerar ser o n.º 1 na lista do PS, embora independente, pelo Porto.
Era um claro convite para entrar na política activa.
Conversámos muito seriamente durante uma semana. A princípio fiquei muito nervoso porque envolvia uma mudança não só do nosso endereço, mas também na minha cabeça. Eu tinha imaginado a reforma do Alexandre como um trampolim para fazermos viagens pelo mundo, estadias nos Estados Unidos, Itália ou Tailândia, durante um, dois, três meses. Pela primeira vez em 30 anos teríamos a possibilidade de ficar num sítio fora de Portugal, explorar a vida lá fora, criar laços.
A política fez um interregno nesse sonho.
Absolutamente. Eu tinha de, não diria abandonar, mas pôr esse sonho em "águas de bacalhau", para utilizar uma expressão portuguesa. Nós queríamos que ele fosse útil para a sociedade portuguesa. Entrar na política só para ter um lugar no Parlamento não é interessante. Sobretudo para um homem que já fez carreira na ciência e que não tem nada a provar. Tínhamos de avaliar muita coisa. No fim, eu disse-lhe: a decisão é tua, se queres avançar, estou 100% de acordo contigo e farei tudo para que seja uma nova aventura positiva e interessante. E foi isso que aconteceu. Pela primeira vez, desde há cinco anos, temos uma atmosfera, na minha opinião, optimista. As pessoas sentem que Portugal pode evoluir. Que não é necessário emigrar para conseguirem um emprego ou para realizarem os seus sonhos.
Tenho uma visão muito negativa: que todo o mundo, incluindo a Europa e os EUA, vai acabar como o Brasil, onde o fosso entre ricos e pobres é gigantesco.
Se este Governo falhar, a situação em Portugal pode piorar?
Se não há espaço para um desenvolvimento lógico, programado, estratégico, com apostas na educação, na ciência, se não houver espaço para isso, o que é a Europa?
Esse é o debate do momento. Que Europa é esta?
Adoro a ideia de uma Europa unificada, por várias razões. No século passado, morreram dezenas de milhões de pessoas em guerras entre estados europeus, incluindo seis milhões de parentes meus no Holocausto. Para evitar situações como essa, seria uma excelente ideia uma Europa lógica, unificada, de paz, de cooperação. Além disso, uma Europa unificada oferece aos nossos residentes muito mais opções. Um jovem português pode trabalhar em Itália, pode estudar em França. Um francês pode vir para Portugal. Este intercâmbio é uma mais-valia. O problema é que a Europa está controlada neste momento por neoliberais. Antes deste período neoliberal, decidia-se um rumo político e depois pensava-se na melhor forma económica de conseguir alcançar esses objectivos. Um exemplo: depois da Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra decidiu, politicamente, criar um sistema nacional de saúde forte, porque precisava disso. Só depois é que os governantes pensaram como é que, economicamente, iriam conseguir criá-lo, reforçá-lo e mantê-lo. O que tem toda a lógica. Hoje em dia as pessoas decidem qual o rumo económico e só depois qual o rumo político. Isso não faz sentido!
Ou seja, a política anda a reboque da economia.
Se tivéssemos feito isso no século XVIII e XIX, ainda havia escravatura. A escravatura no Sul dos Estados Unidos e no Brasil foi a base de todo o programa financeiro e económico. No Sul dos Estados Unidos, qual era a economia? Plantações e quintas trabalhadas por escravos. Então, se a política estivesse a reboque da economia, nesta altura ainda teríamos escravatura e em Portugal ainda teríamos crianças a trabalhar na construção civil. A economia deveria servir uma sociedade, não deveria decidir o programa político e social da sociedade.
Enquanto americano, como é que encara o que se está passar nos EUA?
Quando Trump foi eleito, fiquei fisicamente doente.
Foi um choque?
Foi um choque, sim. Mas tive a intuição de que a eleição estava a correr mal a Hillary Clinton. Escrevi um artigo em inglês chamado "Donald Trump and the Dumbing-Down of America". Em português, era "Donald Trump e a estupidificação da América", que publiquei em vários países e no meu website. Eu queria fazer um alerta. Era o meu contributo para dizer que Trump representa a estupidificação da sociedade americana, ele é um perigo.
Houve muitas reacções, quase de raiva, mesmo aqui em Portugal, contra os eleitores de Trump. Ficou irritado com as críticas feitas aos americanos?
Não. Acho que pouca gente na Europa compreende os Estados Unidos. Há pessoas que pensam que nos Estados Unidos é tudo uma maravilha e outros acham que tudo é horrível. Estou habituado a isso. Olhando para a situação de uma forma fria e lógica, eu diria que é uma questão de educação. Podemos construir um mapa dos EUA e em todos os estados com maiores níveis de escolaridade, Massachusetts, Connecticut, Oregon, Califórnia, etc., Hillary Clinton ganhou, nalguns casos, com 30 pontos percentuais de vantagem. E em todos os estados com menor escolaridade, Alabama, Mississippi, Oklahoma, Donald Trump ganhou com, nalguns casos, 30 pontos percentuais de vantagem. Para mim, a mensagem é clara. A solução para não eleger demagogos, nos Estados Unidos, ou em Portugal, ou em qualquer outro país, é uma educação pública adequada. Daí, voltando para Portugal, quando se colocou a questão de continuar a apoiar escolas privadas em localidades onde existe, de facto, uma escola pública, eu estava claramente a favor do reforço da educação pública. Quero que os meus impostos sejam utilizados para criar escolas públicas maravilhosas. Em parte porque vejo o que aconteceu nos Estados Unidos. Eu sei que a única solução duradoura para evitar ter pessoas primárias, grosseiras e racistas na Casa Branca ou noutro palácio qualquer em França ou Itália, é a educação.
A escola pública funciona bem nos Estados Unidos?
A escola pública nos Estados Unidos é financiada pelo governo federal e em parte pelos impostos locais. Isso significa que, em municípios onde vivem pessoas com rendimentos altos, a escola tem uma base de impostos maior. Essas escolas têm condições maravilhosas. Laboratórios científicos, campos para jogar ténis, piscina, programas de arte, programas de música, clubes de francês, espanhol, português. Tudo. Mas, por exemplo, numa zona urbana pobre como em Detroit, Buffalo ou Cleveland, a base de impostos vai ser muito menor. Aí, as escolas não têm boas condições. Então as pessoas pobres são duplamente penalizadas nos Estados Unidos, porque não têm meios para ter casas e férias, mas também as escolas e os hospitais naquelas zonas não têm condições excelentes. É um sistema muito pouco justo.
E Trump continua a querer substituir o Obamacare.
O Obamacare foi uma medida importante, na direcção certa. Foi um programa um bocado fraco mas, pelo menos, era uma tentativa. Mas existem pessoas nos Estados Unidos, do Partido Republicano, que preferiam ter uma sociedade muito injusta. Elas não dizem isso, mas é basicamente aquilo que querem. Querem manter o fosso entre as pessoas mais ricas, o 1%, e o resto da população. Querem isso porque beneficiam disso.
Por causa dos seguros de saúde?
Em tudo. Eles argumentam: "Porque é que o governo federal, ou qualquer outro governo, devia pagar para ajudar as pessoas?" Porquê? É uma diferença filosófica.
Mas a sociedade norte-americana tem uma parte muito solidária.
Sim, tem uma grande tradição do mecenato. A minha universidade, a Duke University, na Carolina do Norte, foi criada por um multimilionário que produzia tabaco. Em vez de simplesmente dar o seu dinheiro aos filhos e aos netos, criou uma grande universidade.
Isso aconteceu mais recentemente com Bill Gates e Mark Zuckerberg.
É uma grande tradição americana. Eu acho que é espectacular. Em parte é porque nós sabemos, e os multimilionários sabem, que não podemos contar com o governo federal, porque ele tem sido muito limitado pelos estados. Há milhões de pessoas nos Estados Unidos que pensam que não é o papel do governo federal, por exemplo, garantir um programa nacional de saúde. É uma forma de pensar muito diferente do europeu. Eles pensam que esses programas federais são comunistas e socialistas.
O Estado Social é um conceito que ainda não foi interiorizado nos EUA?
É considerado suspeito por uma fracção muito grande da população. Eu diria que é considerado suspeito pela maioria dos votantes em Donald Trump.
Mas isso tem que ver com as raízes da América? O "cada um por si"?
Sim, tem. Ainda existe na mentalidade americana essa ideia de que qualquer programa social é suspeito. Porque cada pessoa deveria construir a sua vida sem a ajuda de uma entidade governamental. Nem toda a gente, evidentemente, mas muitas pessoas ainda pensam assim. É a estratégia declarada do Partido Republicano destruir o programa nacional de saúde e, se eles pudessem, destruiriam também o sistema nacional de educação pública.
Isso seria uma coisa terrível para os americanos.
É terrível do nosso ponto de vista. Para eles, não. Qual é a perspectiva deles? Enriquecer o 1% no topo e o resto… Tenho uma visão na minha cabeça muito negativa. Um pesadelo! Que todo o mundo, incluindo a Europa e os Estados Unidos, vai acabar como o Brasil, onde o fosso entre ricos e pobres é gigantesco. Os ricos vivem em apartamentos, à sua volta está um muro com arame farpado e, às vezes, têm uma casa para um guarda com uma espingarda. As pessoas vivem nestes condomínios fechados e só entram no resto da cidade em carros blindados com vidros escurecidos. O meu grande medo é que os EUA acabem por ficar assim. Porque o fosso está a ficar cada vez maior. E já existem casos. Por exemplo, na zona de Nova Iorque, onde eu cresci, há comunidades completamente fechadas. Uma coisa inimaginável no meu tempo.
Quando diz "comunidades", quer dizer condomínios fechados?
São bairros com 200 casas para a classe média alta, que valem 1,5 ou 2 milhões de dólares. Todo o bairro está cercado por um muro de três metros, há só uma rua para entrar com uma casinha com um guarda a vigiar toda a gente que entra e sai. É esse o caminho dos Estados Unidos neste momento.
Pessoalmente, o que acha de Donald Trump?
Sou de Nova Iorque e lembro-me dele. Era famoso por construir prédios grandes e por dar nas vistas. Adorava ser o centro das atenções. Ele era uma vedeta de um "reality show". Então, a minha ideia de Trump é que ele é um homem do espectáculo.
E pode transformar a política em espectáculo também?
Acho que ele não tem qualquer estratégia política. Faz o que lhe apetece naquele momento. Ele sabia que a única maneira de ser eleito seria fazer um apelo às faixas mais conservadoras, reaccionárias e mais ignorantes dos Estados Unidos. Daí toda aquela conversa sobre o muro que os mexicanos vão pagar. Isso era nitidamente uma tentativa de conseguir os votos dos americanos mais ignorantes, que só pensam numa coisa – a América como número 1. A América é melhor, maior, mais importante. A estratégia política dele é destruir. Pela primeira vez na História dos EUA, temos ministros cujo propósito é destruir o seu próprio ministério. Neste momento, Trump está a dar as suas prendas às pessoas que o apoiaram durante a eleição. A senhora que está à frente do departamento da educação [Betsy DeVos, secretária da educação] não tem qualquer experiência, é uma pessoa ignorante, nunca foi educadora ou professora, ou pesquisadora nessa área. Qual é a experiência dela? Zero. A sua família doou 200 milhões de dólares ao Partido Republicano. Então, ela comprou o Ministério da Educação. E estamos a ver isso a acontecer em todas as áreas.
E a questão da relação com a Rússia. Pode fragilizar o Presidente norte-americano?
Isso é um risco muito grande para Trump, porque os seus apoiantes não são grandes fãs da Rússia. Ele está a arriscar afastar o seu público batendo sempre na tecla de Vladimir Putin como um amigo. É um risco muito grande, para ele e para a sua família. Um dos riscos é ficar preso numa estratégia de Putin. Se ele acha que Putin é o seu grande amigo, está muito enganado. Putin não é amigo de ninguém, excepto dele próprio e dos seus amigos multimilionários.
Deixe-me voltar atrás no tempo a 1990, quando chega a Portugal. Já disse várias vezes que sentiu um choque cultural. Que país era esse que encontrou?
O Portugal nos anos 80 e começo dos anos 90 era um sítio muito fechado. O Porto era uma cidade escura, provinciana. Mas, mais do que qualquer outra coisa, parecia que o país estava parado no tempo. Eu trouxe o meu computador Apple. Passados três meses, precisava de uma fita para a impressora. Não havia uma única loja em Portugal, nem sequer em Lisboa ou no Porto, que vendesse produtos da Apple. Só havia uma loja na Baixa do Porto que vendia o The New York Times ou o The Guardian ou o Le Monde, como se fossem objectos de outro planeta. Ainda por cima eu tive de aprender português. O director da Escola Superior de Jornalismo disse-me que eu podia dar as aulas em inglês, preparei-me durante o Verão para dar as minhas três disciplinas em inglês mas, no primeiro dia de aulas, percebi que o nível de inglês nessa altura era muito baixo. Lembro-me de dizer: bom dia, o meu nome é Richard Zimler, vamos estudar metodologias para analisar o conteúdo da cobertura mediática. Os alunos não compreendiam nada. Tive de mudar logo para uma mistura de inglês e português. As primeiras aulas foram muito medíocres. Mas, mais do que qualquer outra coisa, cheguei a Portugal a pensar que era um homem sofisticado, porque eu tinha visto todos os filmes de nova vaga francesa dos anos 60, porque tinha lido William Faulkner e Jane Austen, porque tinha viajado... Mas eu não era nada sofisticado. Eu achava que o português pensava de uma forma igual ao americano. E não era verdade. O português pensa de uma forma diferente sobre a vida, a morte, a traição, a crueldade, a intolerância, o papel do Estado, o que devia ser o programa nacional de saúde. Pensava de uma forma diferente sobre tudo.
Então, tinha também dificuldade em interagir com os portugueses?
Completamente.
Não era só a língua, era também a mentalidade.
Sim. Fazer amigos era muito difícil para mim. Nesse aspecto, a sociedade americana é muito mais informal. Cinco minutos depois de conhecer um americano num museu em Nova Iorque ou num café em Chicago, encetamos uma conversa e o americano convida-nos logo para jantar em casa dele. Isso é normal nos Estados Unidos! Na Europa, tal nunca acontece. O português em 1990 falava facilmente de filosofia, de arte, do tempo, do trânsito, mas nunca falava da sua vida pessoal. Com um estrangeiro, então, nem pensar! Para conseguir ligar-me a um nível profundo com outra pessoa, tenho de partilhar as minhas experiências, melhores e piores, e tenho de ouvir alguns pormenores da vida pessoal da outra pessoa. É uma troca. E isso nunca acontecia em Portugal nesses tempos.
Sentiu-se frustrado?
Completamente frustrado. Porque eu não sabia como é que ia conseguir fazer amizades aqui.
E a escrita foi um escape para isso?
Em parte, sim. Com a escrita, eu criava o meu próprio mundo onde podia sentir-me em casa, onde podia decidir tudo. Porque eu tinha muito pouco controlo sobre o resto da minha vida. Estava a trabalhar na Escola Superior de Jornalismo, que determinava as minhas disciplinas, e ganhava muito pouco. Essa foi outra faceta muito difícil nos primeiros anos. Eu não tinha dinheiro. Tinha voltado quase à estaca zero.
Hoje Portugal é um país muito diferente?
Não tem nada que ver. Todos os anos, faço 50 a 60 sessões em escolas. Nos últimos cinco anos, acho que fiz mais de trezentas. Hoje em dia, eles [os alunos] abrem o telemóvel, o iPad ou o computador e em dois segundos têm acesso às mesmas informações, aos mesmos sites que uma pessoa em Nova Iorque ou Xangai. Não há qualquer lapso de tempo. Em 1990, Portugal era um país muito isolado. Eu não era a única pessoa a sofrer com isso, os próprios portugueses sofriam com a falta de informação, com a falta de acesso e com o atraso. Os jovens portugueses não têm qualquer ideia de como é que era este país e isso talvez seja bom. Por outro lado, acho que para compreendermos a nossa sociedade devíamos ter uma ideia muito concreta do nosso passado. Do mundo dos nossos pais e dos nossos avós. Tenho pena que esta nova geração talvez não tenha essa base.
Vai muito a escolas por causa dos seus livros. Qual é a sua apreciação da escola em Portugal?
Noto que às vezes os alunos das escolas públicas pensam que não vão conseguir realizar os seus sonhos. Noto isso no nosso diálogo. Há uns anos, eu perguntava sempre: quantos de vocês pensam que vão emigrar depois de acabar o liceu ou a universidade? Em 2011, 2012, dois terços dos alunos levantavam o braço. Era um tema muito falado. Penso que a austeridade mudou a atmosfera nas escolas, muitos alunos pensavam que não tinham futuro em Portugal. Era outra razão pela qual eu achava a política de educação do Governo anterior absolutamente abominável. Eles conseguiram convencer os alunos de que sonhar era só para os alunos da Alemanha, dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Porque é que só começou a escrever em Portugal ?
Comecei a escrever contos antes de vir para Portugal. Depois de tirar o meu mestrado em Jornalismo em 1982, comecei a trabalhar como jornalista na zona de São Francisco. Por volta de 1987, sabia que queria escrever ficção. Gostei muito do jornalismo, mas não era o meu sonho. Não era a minha paixão. Então comecei a escrever contos de dez, vinte páginas. Escrevi por volta de 40 contos e publiquei 20 deles em revistas americanas e britânicas. E, por volta de 1989, tive uma ideia para um primeiro romance. Antes de mudar para Portugal, fotocopiei uns vinte livros na Universidade da Califórnia, uma pesquisa para esse livro, que mais tarde viria a ser "O Último Cabalista de Lisboa". A escrita, para mim, não era uma coisa natural. Sei que há jovens de 25, 30 anos que conseguem escrever um bom primeiro romance. Para mim, não era assim. Precisei de escrever 40 contos para aprender as técnicas de escrita, para aprender a utilizar as ferramentas da profissão, as palavras, o ritmo de um parágrafo... Levei algum tempo para aprender as técnicas de escrita. E só depois de três ou quatro anos consegui conquistar a confiança para escrever um romance.
Que veio a ser "O Último Cabalista de Lisboa". Esperava ter um sucesso tão grande com esse livro?
Não. Aliás, as primeiras indicações eram de que iria ser um fracasso total. Escrevi um manuscrito em inglês, enviei para o meu agente literário em Nova Iorque e ele enviou para as editoras americanas. Ao longo de dois anos, o livro foi rejeitado por 24 editoras. Todas elas diziam: livro fascinante, enredo maravilhoso, personagens únicas, mas não vai vender. Porque os americanos têm esse problema geográfico, pensam que o mundo começa na Florida e acaba na Califórnia. Lisboa de 1506 estava fora do radar das editoras americanas. E eu pensei: o meu livro nunca vai ser publicado. Estava superdeprimido. Pensava, obviamente, que não iria ser escritor, que teria de fazer outra coisa. Foi muito difícil. Mas tive uma ideia louca. Que era mostrar o manuscrito a uma editora portuguesa. Não sabia nada do mundo editorial português, então pedi listas de editoras a duas pessoas que conhecia e o nome em comum era Maria da Piedade Ferreira, então directora da Quetzal Editores. Falei com ela ao telefone e ela disse: OK, tudo bem, envie-me o manuscrito. Eu enviei e, passados três meses, ela não tinha respondido. Eu pensei, obviamente, que não queria o livro. Telefonei-lhe e ela: faça o favor de vir a Lisboa e falaremos sobre o manuscrito. Cheguei ao escritório dela e a primeira coisa que me disse foi: o que é que gostaria de ver na capa? Eu não estava à espera e disse: não estou a compreender. E ela: tem uma imagem, uma ideia para a capa do seu livro? Eu não acreditava. A minha carreira está completamente ao contrário, de pernas para o ar, porque o meu primeiro romance foi editado numa língua estrangeira antes da língua em que o livro foi escrito.
Só depois de ter sucesso aqui é que foi publicado nos Estados Unidos?
Duas semanas depois de sair em Portugal, foi n.º1 na lista de "bestsellers". Graças ao sucesso em Portugal foi possível vender os direitos na Feira do Livro de Frankfurt à Alemanha, Brasil e Itália. E, mais tarde, aos Estados Unidos e Inglaterra. E agora o livro está traduzido para 23 línguas. É um milagre.
Subiu-lhe à cabeça esse sucesso tão repentino?
Não, porque eu já tinha 40 anos. Não era uma criança. O meu segundo romance foi um fracasso nos Estados Unidos. Teve algum sucesso em Inglaterra e na Austrália. O que aprendi é que se eu não quisesse repetir e reescrever o mesmo livro dez vezes, como muitos autores fazem, a minha carreira iria sofrer oscilações. A maneira de ter mais sucesso é escrever 20 livros sobre uma conspiração no Vaticano. Repetir, repetir, repetir. Mas eu não queria fazer isso. E paguei um preço. E o preço é que, às vezes, os livros vendem muito bem e outras vezes vendem muito mal.
Neste seu último livro "O Evangelho Segundo Lázaro", de onde surgiu a ideia de trabalhar a história bíblica da ressurreição de Lázaro?
Eu conhecia a história do Evangelho Segundo S. João porque tinha estudado Religião Comparada e, por isso, li o Novo Testamento. Sempre me fascinou a ideia de estar morto e depois ser ressuscitado. Acho que 99% das pessoas só pensa numa coisa – o milagre. Eu pensava noutra coisa. Como é que era a perspectiva do Lázaro. O mais importante é que ele estava morto, acordou no seu túmulo, fragilizado, desorientado, sem qualquer memória do que tinha acontecido, sem qualquer memória de uma vida após a morte. Então, para ele não é um milagre, é um trauma muito grande.
É interessante porque diz que é ateu, mas nos seus livros há coisas que vai buscar às suas raízes judaicas. Porque é que tem necessidade de tocar esses temas?
Eu adoro a mitologia. Embora não seja crente, no sentido habitual do termo, acredito no misticismo. Acredito que há uma realidade transcendente ou mais profunda. E o que é interessante nesta história da fé é que, falando na perspectiva de Lázaro, ele perde a fé numa vida além da morte. Nunca perde a fé no seu amigo Jesus, no seu amigo de infância. Acredita na missão dele. Acredita na possibilidade de construir uma sociedade de mais justiça. Eu funciono assim. Não tenho fé num deus pessoal, mas acredito no projecto de melhorar a sociedade. Dessa perspectiva, sou igual a Lázaro.