Notícia
Restaurantes: Simplesmente genial
Criativo e sem tontices laboratoriais, trabalhador e humilde, Leonel Pereira, chef do São Gabriel, é caso especial. Um tipo vai lá jantar e uma semana depois anda pela rua a pensar na forma como ele cozinhou uma sarda, uma pescada ou um lagostim. Esta é a diferença entre um bom chef e um cozinheiro genial.
Durante anos, os críticos de gastronomia consideraram - e ainda consideram - que a não atribuição de, pelo menos, um estrela Michelin ao chef Leonel Pereira era uma injustiça chocante e, em simultâneo, risível. Confesso que, durante muito tempo, também alinhei na lamúria. Mas, a partir de determinada altura, sempre que "o guia da marca de pneus" (José Quitério dixit) se esquecia, em Novembro, do chef algarvio, a mim só me ocorria a famosa frase que o Luís Pacheco berrava quando era colocado perante casos flagrantes de injustiça e que acabou mesmo por dar título a um livro do crítico literário João Pedro Jorge, mas que agora não cito por respeito à sensibilidade dos leitores (vão ao Google e dão logo com ela). Actual líder no restaurante São Gabriel, no Algarve, Leonel é um criador de rasgo, trabalhador incansável e senhor de uma humildade rara no universo dos tachos. Aliás, quando alguém lhe diz que a humildade é bem capaz de ser uma das causas da sua ausência no reino michelinizado, ele abre os braços, suspira e esboça um sorriso para dizer que não consegue ser de outra forma. Sente a injustiça, não o nega, mas continua a fazer um trabalho solitário que consiste em pegar nos nossos produtos e manipulá-los em termos de confecção, texturas e combinações surpreendentes. Deus o guarde assim.
Quando ainda estava no restaurante Panorama, no Hotel Sheraton, em Lisboa, eu próprio assisti ao processo criativo de alguns dos seus pratos históricos. A clientela era constituída por quadros superiores, administradores de grandes empresas e políticos que, apesar de gostarem de almoçar numa sala luxuosa, não desdenhavam os pratos da nossa gastronomia, tipo uma canja ou o belo cozido à portuguesa. Mas como ninguém imaginava chegar à mesa do Panorama terrinas de sopa ou couves a transbordar da travessa com orelheira e chispe pelo meio, Leonel Pereira passou quase um ano a conceber a sua interpretação de cada um dos pratos. Donde, a canja aparecia ao cliente numa forma de ninho (julgo de que alho francês), num caldo de arroz com um ovo que reproduzia aquelas miniaturas que se encontram nas entranhas das frangas. O cozido, por seu turno, consistia numa base de puré de nabos cozidos, com miniaturas de enchidos e de carnes por cima deste. Eram criações com todo o sabor dos pratos originais e com uma estética que provocava pequenos silêncios à mesa (em particular o ninho). Resultado, os clientes saíam de um restaurante fino com o sabor de pratos de memória. Mas, volto a insistir, tais pratos estiveram mais de um ano em testes. Muito cozido e muita canja se deitou fora naquele Panorama.
Hoje, no São Gabriel, frequentado por muitos estrangeiros, Leonel Pereira continua obcecado pela criatividade. Sabe que tem de manter alguns pratos na carta por causa dos fãs, mas, em cada carta nova, renova entre 70 a 80 por cento do pratos.
Por estes dias tive a oportunidade de provar algumas das mais recentes criações e senti que, durante mais de uma hora, o meu paladar, o meu sentido estético e o meu estado de humor eram postos à prova.
Saltando por cima dos snacks de entrada por questões de espaço, tenho de destacar a sarda maturada com creme de rábano e compota de cebola com açafrão; um escabeche de sardinha sobre chicória; o lagostim lacado, endívia, pezinhos de porco de coentrada e caviar desidratado ou a pescada de anzol com cevada e tempura de algas.
Se o leitor quiser um bom argumento para visitar com urgência o São Gabriel, revelo aqui que uma semana depois de ter jantado no Algarve, dou por mim -por vezes distraído com a leitura do jornal ou simplesmente vagueando pela rua - a viajar pelos pratos do Leonel. E suponho que estas recordações que chegam do nada vão durar semanas. Ou meses.