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Pedro Pinho: O mundo do trabalho está a colapsar

“A Fábrica de Nada”, o filme da produtora Terratreme, com autoria colectiva, mas realizado por Pedro Pinho, fala do que talvez venha a ser o tema das próximas décadas: a mudança do trabalho, a forma como se esbateram os conceitos do que é produzir e as fronteiras entre quem somos e o trabalho que fazemos.

Bruno Simão
08 de Setembro de 2017 às 14:00
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Ao falar, usa a palavra "luz", como se trabalhasse para iluminar o que o deixa perplexo ou para afugentar a escuridão. Começou no documentário, porque não tinha de esperar para começar a filmar, a experimentar. Filmou os migrantes que tentavam chegar à Europa, quando esse ainda não era o grande tema do nosso tempo, em "Bab Sebta". Fez documentário com pressa de reagir aos acontecimentos e agora aprendeu a esperar pelos tempos da ficção. "A Fábrica de Nada", o filme da produtora Terratreme, com autoria colectiva, mas realizado por Pedro Pinho, fala do que talvez venha a ser o tema das próximas décadas: a mudança do trabalho, a forma como se esbateram os conceitos do que é produzir e as fronteiras entre quem somos e o trabalho que fazemos. Ganhou um prémio em Cannes e foi só o começo de um percurso extraordinário por festivais estrangeiros. Estreia nas salas portuguesas no próximo dia 21 de Setembro.


1. Às tantas, arranjámos um apartamento na Póvoa de Santa Iria e mudámo-nos para lá. Decidimos que o filme ["Fábrica de Nada"] se passaria naquela zona e estivemos lá, quatro de nós da [produtora e colectivo de realizadores] Terratreme, a escrever, durante uns meses. Íamos procurando os locais e fazendo "castings" entre operários desempregados a viver situações complicadas e, à medida que íamos ouvindo as histórias, íamos escrevendo e incluindo essas histórias no filme.

Isso foi em 2014, mesmo no pico da neurose colectiva que se abateu sobre Portugal. Apanhámos um sentimento de frustração, de impotência, de humilhação, e com consequências terríveis do ponto de vista íntimo: pessoas sem dinheiro, sem trabalho, a desatinar com os seus queridos, pessoas a suicidarem-se, a terem ataques cardíacos... Obviamente, o filme foi bastante contaminado por esse ambiente e a escrita foi muito no sentido de procurar uma luz possível no meio dessa negritude toda.

2. O filme acontece ali, nesse momento da crise, mas é sobre algo que continua e que vai agravar-se nos próximos tempos: o final do trabalho e da estruturação da sociedade à volta do trabalho, com a centralidade que tem e que ganhou no século XIX e no século XX. De repente, esse mundo do trabalho está a colapsar. Essa é uma questão que não se restringe a Portugal nem ao período da crise. É uma questão mundial.

Acho que a recepção que o filme tem tido fora de Portugal também tem que ver com isso: além de as pessoas reconhecerem o momento que se viveu aqui, em Portugal, também reconhecem um problema que afecta os franceses ou os americanos. E não só afecta directamente, no sentido em que há muita gente a ficar sem trabalho, como também tem repercussões a nível político e em toda a organização da sociedade. A Le Pen, o Trump: são ondas de choque desta reconfiguração brutal que estamos a viver, e que só agora é que começou.

3. A minha maneira de posicionar a câmara - no meio da situação - foi-me muito ensinada pelo documentário, no sentido em que não se está atento só ao que está em frente da lente, está-se atento a tudo aquilo que está à volta. O documentário ensina isso: onde é que estão os olhares, onde é que está alguém que está a fazer um gesto que pode ser significante, onde é que está uma intervenção boa ou um diálogo bom. Essa é a escola do documentário: planificar, pensar os planos, no meio dos acontecimentos. A minha relação com a ficção é bastante construída com essa prática, essa escola. E isso funciona muito bem com não-actores, como aconteceu neste filme, em que tanto existem actores profissionais como não-actores.

O meu próximo projecto é também de ficção. A minha formação, na verdade, é mais de ficção. Comecei a trabalhar em documentário por questões práticas. Saí da escola, acabei de estudar e queria começar a filmar, e o documentário permite trabalhar com menos recursos. Não precisas de uma grande equipa nem de actores. Precisas só de um assunto e de uma realidade; e de uma câmara de filmar e de som. Por isso é que fiz documentários, projectos mais reactivos, mas sinto-me bem na ficção, porque permite introduzir-me mais no filme.

Mas [a linguagem documental] é uma ferramenta que tenho, uma maneira de trabalhar que aprendi e que tem muitas potencialidades, sobretudo ao nível da impressão de verdade, do jogo da interpretação dos actores, na construção e sofisticação de diálogos que eu não conseguiria escrever. Isso interessa-me: fazer trabalho que não saia inteiramente de uma caneta.

4. Eu tinha uma câmara, um amigo meu tinha um carro, começámos a filmar e assim fizemos um primeiro filme, que foi o "Bab Sebta".

Foi em 2005 que começaram a aparecer em Ceuta e Melilla magotes de pessoas, vindas da África subsariana, a tentar passar para a Europa. Durante dias seguidos, semanas, grupos de pessoas lançaram-se contra a fronteira, sabendo que cem ou duzentas passavam, mas que muitas seriam presas ou mortas. Foi arrepiante, para mim, ver aquilo nos jornais. Senti que era preciso ir lá e dar uma certa luz sobre aquilo.

Conseguimos um pequeno apoio de uma produtora, só para a gasolina. E fomos. Éramos três. Começámos a contactar pessoas ainda do lado espanhol, depois passámos para o lado marroquino. Fomos ter a uma casa, um sítio incrível, num bairro junto ao cemitério, em Tânger, mas às tantas tivemos de voltar a Ceuta e, nessa altura, roubaram-nos o carro, com o material de filmar, com a roupa, os passaportes, tudo. Ficámos no restaurante exactamente com o que tínhamos no corpo, a olhar uns para os outros: e agora? Acho que esse contratempo - tivemos de voltar para Lisboa, sem nada, só tínhamos algumas cassetes que serviram depois para montar um pequeno "teaser" - deu-nos uma energia muito grande: tínhamos mesmo de fazer o filme, se não fizéssemos, seria uma derrota demasiado pesada.

Mergulhámos a fundo no projecto, conseguimos apoios, e voltámos um bocadinho mais desafogados: dessa vez, não com um carro mas com uma carrinha, e com mais três ou quatro amigos que se podiam revezar a tomar conta do material. Passámos quatro meses na Mauritânia e em Marrocos e íamos filmando as pessoas que estavam à espera para passar. O filme é sobre isso: sobre os tempos de espera das pessoas que estão ali, à procura de irem para outro sítio, o sítio sonhado.

5. O cinema obriga a esperar. Demora tempo. Pelo menos, da maneira como eu gosto de trabalhar. Quando estou a montar, preciso de tempo para deixar as coisas irem amadurecendo, quase por camadas. Tempo para montar, parar, voltar a montar, parar. E, antes disso, na forma de filmar: acho que a rodagem deve ter tempo para mergulhar nos sítios, para conhecer bem as pessoas, para esperar o momento certo para filmar, para esperar um olhar. Esse tempo produz resultados inequívocos.


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