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Patrícia Bento d’Almeida: Lisboa é uma manta de retalhos urbanística

Patrícia Bento d’Almeida e João Palla Martins juntaram os rolos de projectos dos respectivos avôs e estudaram a sua obra durante 15 anos. Da investigação, resultou a exposição “Victor Palla e Bento d’Almeida: Arquitectura de Outro Tempo”, que esteve na Garagem Sul do CCB, e um livro com o mesmo nome. Uma obra que apela à preservação do património desta dupla de arquitectos que ia muito além da arquitectura.

Bruno Simão
28 de Julho de 2017 às 14:00
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Patrícia tinha consigo vários rolos de projectos de arquitectura do avô, Joaquim Bento d'Almeida. João, neto de Victor Palla, tinha outros tantos. Patrícia e João juntaram-se, desdobraram centenas de rolos e, durante 15 anos, investigaram a obra dos seus avôs. Do estudo resultou a exposição "Victor Palla e Bento d'Almeida: Arquitectura de Outro Tempo", coordenada pelos netos e com montagem de Diogo Machado Lima. A mostra esteve na Garagem Sul do CCB e com ela foi publicado um livro com o mesmo nome, que contém textos de arquitectos como Michel Toussaint e grafismo de Pedro Falcão. Uma obra que apela à preservação do património desta dupla que ia além da arquitectura. Victor Palla e Bento d'Almeida introduziram os snack-bares em Portugal, com nomes como Términus, Pique-Nique, Tip-Top, Tarantela, Pisca-Pisca, Buzina, Galeto e Confeitaria Cunha, estes últimos ainda de pé. Para cada projecto, os arquitectos desenhavam mobiliário e outros objectos, como os suportes para galheteiros, que continuam ao serviço, como marcas de um património que não quer ser esquecido. 


Eu e o João Palla Martins conhecemo-nos por volta do ano 2000, por sugestão do arquitecto Michel Toussaint. Ele sabia que ambos estávamos interessados em estudar a obra dos nossos avôs. Eu tinha alguns rolos de projectos que vieram parar às minhas mãos através do meu pai, que os resgatou do lixo na altura em que o ateliê de Victor Palla e Bento d'Almeida encerrou, em 1973. O João tinha outros rolos com ele. Estudámos arquitectura na mesma faculdade, mas não nos cruzámos e as nossas famílias tinham perdido o contacto. Quando nos conhecemos, sentimos logo uma grande cumplicidade, juntámos os nossos rolos e, ao longo de 15 anos, e com base em listas provenientes do ateliê, em rascunhos e papéis, identificámos mais de 700 entradas de projectos. Tentámos completar a lista, consultando arquivos municipais e privados, mas existem buracos na nossa investigação e a história ainda está por completar. Reunimos tudo aquilo que fazia parte do espólio dos nossos avôs e decidimos doá-lo a uma instituição pública que o tratasse e digitalizasse. Neste momento, é a Câmara Municipal de Lisboa que está encarregada de o fazer.

No meio da arquitectura, os nomes Joaquim Bento d'Almeida e Victor Palla eram bastante conhecidos. Não posso deixar de apontar o trabalho de Ana Tostões, nomeadamente a tese de mestrado "Os verdes anos na arquitectura portuguesa dos anos 50", em que estuda algumas obras desta dupla de arquitectos. Mas a historiografia deles ainda estava incompleta e nós quisemos dar a conhecer tudo o resto, que a maioria das pessoas não conhecia.

Depois de acabar o curso, decidi avançar para o primeiro grande estudo panorâmico da obra de Victor Palla e Bento d'Almeida numa tese de mestrado com a orientação da Margarida Acciaiuoli e do Michel Toussaint. Depois, no doutoramento, foquei-me no bairro do Restelo, onde estão 50 moradias desta dupla de arquitectos. Quase ao mesmo tempo, o João fez o estudo da obra gráfica de Victor Palla. No meio das nossas investigações, sempre que podíamos, tentávamos localizar informação paralela, indo a casa das pessoas e reunindo todo o material possível.

Depois da exposição, recebemos "feedback" de muitas pessoas que diziam estar surpreendidas com a dimensão da obra destes arquitectos, sabiam que eles eram arquitectos mas não sabiam que eles eram mais do que isso. De facto, eles eram muito mais do que arquitectos e é por isso que a exposição e o livro têm o nome de "Arquitectura de outro tempo". A preocupação deles ia ao ponto de desenharem todos os pormenores de cada projecto, desde o mobiliário aos suportes dos galheteiros para snack-bares.

O Términus foi o primeiro snack-bar feito por Victor Palla e Bento d'Almeida, no final dos anos quarenta, e nem sequer tinha essa designação, chamava-se Bar Expresso Términus. Só mais tarde, com o Pique-Nique, é que surge a denominação snack-bar. Estávamos no início dos anos cinquenta e as pessoas não entendiam o conceito. O próprio Victor Palla chegou a dizer-me: "Ó Patrícia, imagina o que era na altura uma senhora ter de levantar a perna para se sentar ao balcão ao lado de um estranho?" O projecto original do Pique-Nique até previa um acesso de elevador junto à entrada para que as senhoras não tivessem de atravessar a zona do balcão…

Estes espaços surgiam um pouco em oposição ao café das tertúlias, onde as pessoas se sentavam demoradamente. Aqui, a ideia era servir refeições rápidas ao balcão, tão rápidas que até havia a possibilidade de serem transportadas. Eles desenharam o saco do Pique-Nique! Era um McDonald's sem o ser.

Na fase do pós-guerra, era difícil importar mobiliário para estes espaços e, então, Victor Palla e Bento d'Almeida começaram a desenhar as peças de mobiliário e depois recorriam a carpinteiros e serralheiros locais. Foi assim, experimentando, que fizeram, ao longo dos anos, vários tipos de cadeiras e balcões de snack-bares, sempre com uma preocupação ergonómica. O balcão extenso era trabalhado para uso duplo. Do lado do cliente, havia uma prateleira para pousar o chapéu e outros pertences, do lado do empregado existia um espaço para manusear uma série de alimentos.

Dos vários snack-bares que desenharam, estão de pé apenas dois, o Galeto, em Lisboa, e a Confeitaria Cunha, no Porto. Os outros estabelecimentos foram mudando de proprietário e, ao longo do tempo, perderam o carácter original da obra. Foi o que aconteceu também com os cabeleireiros, com as farmácias e com as agências bancárias, como as do Crédit Franco-Portugais. E, para todos estes espaços, desenharam tudo, desde as cadeiras de cabeleireiro aos lavatórios de inspiração parisiense, como dizia Victor Palla. Eram lavatórios corridos, tipo manjedoura, que permitiam encostar as cabeças das senhoras e lavá-las em simultâneo. Enquanto curadores da exposição, a nossa preocupação passou também por alertar para a existência deste património menos conhecido.

Victor Palla e Bento d'Almeida eram militantes do movimento moderno. Eles eram modernos de manhã à noite, e isso notava-se na sua preocupação de renovar a imagem gráfica das revistas, nos textos que escolhiam, nas viagens que faziam. Ao longo dos 25 anos em que trabalharam juntos, nota-se uma evolução da sua obra. Enquanto na década de 50 apresentam formas angulosas, palas, pérgulas, coberturas em borboleta, na década de 60 conjugam formas hexagonais e criam desníveis. Estavam sempre a par daquilo que se fazia em Portugal e no resto do mundo, comunicando quer para os seus pares quer para a classe média, o que aconteceu com os projectos para a Casa Eva - habitações que a revista Eva sorteava no Natal. Através destas casas, sorteadas durante vários anos, quase que vemos a evolução da história da arquitectura portuguesa.

Ainda existem muitas obras de pé, passíveis de serem classificadas, como o Galeto, a Confeitaria Cunha, a casa do Comandante Teixeira da Silva, as escolas primárias, a Fábrica Kores e a Fábrica Martini & Rossi, cujas estruturas ainda existem. A investigadora Deolinda Folgado já tem alertado para a historiografia de um património industrial. Nós, familiares, continuamos interessados em estudar a obra de Victor Palla e Bento d'Almeida, mas, sozinhos, não podemos fazer tudo. É importante que a sociedade civil também se envolva.

Sou filha, neta e sobrinha de arquitectos. Acompanhei sempre o meu pai nas obras, lembro-me de ir com ele ao ateliê do meu avô, na Rua Conde Redondo… Formei-me em 2000, e, quando acedi aos rolos de Victor Palla e Bento d'Almeida, enveredei pela investigação. Actualmente, estou a fazer o pós-doutoramento sobre o centro de investigação em arquitectura no LNEC e tenho-me debruçado sobre o património arquitectónico e urbano em Portugal. Chego à conclusão a que cheguei quando estudei o bairro do Restelo: Lisboa é uma manta de retalhos em que cada bairro dificilmente se mistura com o bairro seguinte. E cada intervenção urbana não tem muito em consideração a história urbanística do lugar. Não podemos ser radicais ao ponto de querer preservar tudo, mas temos de respeitar a história urbanística de cada lugar, ainda que nem tudo seja património só porque é de um determinado tempo. Por isso, é importante conhecer o nosso território e a nossa arquitectura, dando aos investigadores a possibilidade de se debruçarem no estudo desta amálgama para conseguirem identificar aquilo que se justifica preservar e o que pode ser modificado perante determinadas condições. Sempre com respeito pela história da arquitectura, algo que penso que não existiu com a obra de Victor Palla e Bento d'Almeida. 


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