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O "ano sabático" está a ganhar adeptos em Portugal

Cansaço, vontade de ter uma experiência de vida diferente, querer ganhar novas competências, um desgosto, o desejo de fazer voluntariado ou de aprender uma língua. São muitas as razões que levam trabalhadores e estudantes a tirarem um “ano sabático”, também conhecido como “gap year”.

Miguel Baltazar
21 de Outubro de 2016 às 10:59
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Foto em cima: Silvana Barreto despediu-se para partir em Novembro para a Austrália, onde vai estudar inglês durante seis meses. Paulo Martins é o director-geral da VidaEdu, uma empresa especializada em experiências educativas no estrangeiro, que criou o programa "Ano Sabático - Viajar & Trabalhar".  


Talvez a ideia já lhe tenha passado pela cabeça. Parar a sua vida profissional durante um tempo, fazer a mala e viajar pelo mundo. Mas logo de seguida vem a pergunta: "E como vou viver sem um salário?" É aí que muitos deixam cair o sonho. Silvana Barreto, com 27 anos, é um desses casos. Sempre acreditou que o dia de partir à aventura iria chegar, mas teve de adiar o projecto durante vários anos. Desde a adolescência que sentia vontade de sair de Portugal. Mas só nestas férias de Verão tomou a decisão de partir. Vai estudar inglês para a Austrália no dia 14 de Novembro. "Estou muito entusiasmada", diz com um sorriso. Há três meses que andava a pensar deixar o emprego. Ganhou coragem e despediu-se da empresa onde trabalha há quase quatro anos. Procura, sobretudo, sair da sua zona de conforto. "Eu sou secretária numa empresa de formação e também sou responsável pelo departamento de marketing", explica. Passado todo este tempo, "já não iria haver muito mais oportunidades para evoluir na empresa". As pesquisas que fez na internet despertaram-lhe o interesse pela Austrália, que considera ser "um país que tem imensas oportunidades" e com "uma qualidade de vida completamente diferente". Está ainda em fase de preparação da viagem. Espera-a a cidade de Gold Coast, no estado de Queensland. No início, os pais "ficaram um bocado assustados" por ser um destino tão longínquo, mas agora "apoiam totalmente". Para esta aventura, Silvana conta com uma reserva financeira que conseguiu por causa de um acidente. Há três anos, foi atropelada e teve direito a uma indemnização. Será esse o seu "balão de oxigénio" durante os seis meses que vai viver no outro lado do mundo.

Guilherme Miranda já está a gozar o seu "ano sabático". Este professor de Geografia tirou uma licença sem vencimento na escola onde trabalha, em Torres Vedras, para poder viajar durante este ano lectivo. Tem 38 anos e uma situação profissional estável. Começou a carreira com 21 anos e leccionou sempre na mesma escola. O que o levou a fazer o "gap year" foi "um sentimento constante de repetição e de alguma estagnação, sobretudo nos anos mais recentes". Mas foi também inspirado pelo exemplo de uma amiga e colega de profissão, que teve recentemente a mesma experiência. A viagem será longa e passa por vários países da Europa. Começou em Agosto, em Espanha, passou por Londres e agora está na Dinamarca, em Gram, na Jutlândia do Sul. Entrámos em contacto via Facebook. É através desta rede social que tem dado notícias à família e aos amigos. Para este docente, a experiência vai muito para além do turismo. A par de "querer ter a oportunidade de explorar mais o mundo, inserir-me noutras sociedades e até culturas de forma mais constante", está também "a questão do desenvolvimento pessoal, a oportunidade de crescimento". E acredita que foi isso que fez com que a direcção da escola respondesse ao seu pedido "de forma bastante positiva". Não tem dúvidas de que a sua experiência terá "repercussões" no seu desempenho profissional e na comunidade educativa onde está inserido.

Guilherme está a juntar o prazer de viajar ao voluntariado. Trabalha actualmente como voluntário numa escola holística e centro de formação. Para poder fazer esta viagem, teve de se preparar financeiramente. A primeira coisa a fazer foi vender a casa. "Fui poupando algum dinheiro, deixei de fumar em Dezembro do ano passado (isso foi, no meu caso, uma poupança considerável) e, mais importante, deixei de ter despesas fixas relevantes. Na próxima semana, parte para a Irlanda, depois Inglaterra e Escócia. No Natal, regressa para passar a consoada com a família. É só um intervalo.

Uma experiência ainda rara

Em Portugal, não é comum um trabalhador apresentar um pedido de licença sem vencimento para tirar um "ano sabático". Nos currículos, essa experiência "ainda é uma raridade", diz Pedro Branco, director executivo da NextMove, uma empresa especializada no recrutamento de quadros intermédios, técnicos altamente qualificados e perfis de direcção. Apenas entre os docentes nas universidades a prática é já antiga, explica. Mas nos países anglo-saxónicos é muito habitual, especialmente entre os jovens. Muitos tiram um ano antes de entrarem no ensino superior ou após terminarem o curso para ganharem "mundo", amadurecerem e estarem mais bem preparados para enfrentar uma carreira profissional ou a vida académica. Um dos casos mais mediáticos foi o da filha mais velha do Presidente dos Estados Unidos, Malia Obama, que vai tirar um "ano sabático" antes de entrar em Harvard. Malia não terá certamente problemas em pagar essa paragem, mas a maioria dos jovens que toma esta decisão, quando não tem pais que os apoiem financeiramente, tem de trabalhar antes ou durante o "ano sabático" para conseguirem uma almofada financeira.

Existem várias entidades que ajudam a dar o passo. A Associação Gap Year Portugal, uma organização sem fins lucrativos, tem por missão promover junto dos portugueses esta "pausa na vida quotidiana". E a VidaEdu, uma empresa especializada em experiências educativas no estrangeiro, criou recentemente o programa "Ano Sabático - Viajar & Trabalhar", que permite aos participantes terem o seu sustento durante o período de "pausa", que pode ir de duas semanas até um ano. Quando chegam aos destinos escolhidos para estudar, fazer voluntariado ou simplesmente viajar, podem optar, por exemplo, por tomar conta de crianças, trabalhar em hotelaria ou agricultura. O programa foi lançado a 15 de Outubro e, na plataforma online, já foram recebidos "milhares de contactos" a pedir informações, diz o director-geral. Na apresentação do programa, que aconteceu num hotel de Lisboa, estiveram 200 pessoas. "Eram sobretudo jovens, mas não só. Tivemos muitas pessoas acima dos 40 anos, que estão empregadas. Desde professores a funcionários públicos, trabalhadores do sector privado…", diz Paulo Martins.
cotacao "A permanência em situações de aparente segurança e de 'falsa' estabilidade, por medo da mudança, poderá conduzir ao cansaço e ao rápido desgaste", defende Guilherme Miranda, que está a tirar um ano sabático. 
Loïc Pedras já deu vários "workshops" no Museu do Oriente sobre o "gap year", onde partilhou a sua experiência de viajante. "Confesso que não esperava tanto interesse por parte das pessoas", revela. E não foram apenas jovens que assistiram. Também lá estavam pessoas "entre trabalhos" e algumas "já na reforma". O que as motivava era sobretudo "tempo para pensar, o autoconhecimento, para ajudar a projectar a vida futura, para se inspirar (por exemplo, pessoas das indústrias criativas), para ler e escrever". Mas também houve quem quisesse fazer voluntariado ou simplesmente "tirar partido da liberdade e do prazer de viajar durante um longo período de tempo". Loïc vive actualmente na Austrália. É professor convidado na Universidade de Tecnologia de Sidney e está a terminar o doutoramento em Gestão. Há 17 anos que viaja pelo mundo. Já esteve em mais de uma centena de países e partilha as suas experiências na sua página no Facebook "Volta ao mundo em 80 anos" (https://www.facebook.com/voltaaomundoem80anos). Em regra, quem decide deixar tudo para trás, fazer as malas e partir gosta de partilhar a experiência em tempo real com a família e os amigos. Uns fazem-no através de blogues, outros das redes sociais. Mas também há quem conte as histórias que vai encontrando pelo caminho através da comunicação social. Um desses casos é o casal André Carvalho e Carolina Quina, que se despediram dos seus empregos para, durante oito meses, viajarem pelo mundo com os três filhos, de oito, cinco anos e 17 meses. A viagem ficará documentada no blogue "Blue Olive".

Quem trabalha e toma a decisão de fazer um ano sabático tem de ter "muita coragem", admite Paulo Martins, da VidaEdu. É preciso nadar contra a corrente. E não é só para vencer a resistência da entidade empregadora. A família e os amigos, às vezes, também não ajudam. "Há uma tendência para dizer: 'Não faças isso, vais-te arrepender, vais prejudicar a tua carreira.' E não é nada disso", afirma aquele responsável. Ainda assim, não tem dúvidas de que "há cada vez mais empresas que dão valor a este tipo de experiências". Quanto mais velho o trabalhador, mais difícil é ganhar coragem. "Quando têm um contrato de trabalho, vão-se acomodando, depois têm casa, filhos... Torna-se mais complicado. Por isso, o típico ano sabático acontece quando as pessoas são mais novas, porque não têm estas responsabilidades", explica.

Dar e receber

Mas o que ganha uma empresa em deixar partir um trabalhador para um "ano sabático"? No imediato? Nada, admite Paulo Martins. O ganho, defende, é quando a pessoa regressa, porque vem "muito mais motivada, mais agradecida e com um conhecimento melhor". Em termos técnicos, também pode melhorar, por causa dos "contactos que ganha, das línguas que de-senvolve e dos novos métodos de trabalho ou de organização que aprende". No fundo, diz, "não é um passo atrás, é parar um bocadinho para depois dar muitos passos em frente. Isso só se faz arriscando." Loïc Pedras concorda e sublinha que "no mercado global esta actividade é valorizada num currículo". De facto, há mesmo "profissões que promovem e que incluem [o 'gap year'] como parte do seu plano estratégico". Por exemplo, o designer Stefan Sagmeister fomenta-o na sua empresa com o objectivo de "inspirar o processo criativo" através das viagens e do contacto com outras culturas. Para Loïc, o "gap year " é "um investimento" que beneficiará tanto o trabalhador como a própria entidade empregadora.

Mas muitas empresas não estão disponíveis para "perder" um trabalhador durante um longo período. E, nesses casos, o que acontece é que "se a pessoa quer mesmo ir, resta-lhe despedir-se e partir", conclui Paulo Martins. A lei não obriga o empregador a aceitar o pedido de licença sem vencimento de um trabalhador para tirar um ano sabático. "Pressupõe o acordo entre as partes", explica o especialista em direito laboral Diogo Leote Nobre. E, se o empregador não aceitar, "o trabalhador não pode fazer nada". Só em casos muito concretos a empresa não pode recusar, nomeadamente quando a licença tem por objectivo a frequência de cursos de formação que tenham que ver directamente com a actividade profissional da pessoa. Se houver acordo entre as duas partes, a licença não tem um limite temporal. No período da licença, o trabalhador mantém o vínculo à empresa e a antiguidade. A empresa tem o dever de assegurar o posto de trabalho quando a pessoa regressa. Diogo Leote Nobre diz que estas situações ainda são muito raras.
cotacao No mercado global, esta experiência é valorizada. Há "profissões que promovem e que incluem [o 'gap year'] como parte do seu plano estratégico", refere o organizador de "workshops" sobre viagens Loïc Pedras. 
E, para as empresas, é uma questão que levanta vários problemas. Desde logo, "porque a empresa vai ter de recrutar alguém" para substituir o trabalhador. E, por outro lado, "abre um precedente" que pode "criar mal-estar" quando outros trabalhadores quiserem fazer a mesma coisa.

Silvana Barreto até teve o apoio do patrão. A decisão de se despedir prendeu-se com o facto de não saber se volta a Portugal. Agora vai estudar inglês durante seis meses "para ficar 100% fluente" mas, se conseguir um contrato de trabalho, pretende renovar o visto e tentar entrar na universidade para tirar uma pós-graduação. Vai viajar através do programa "Ano Sabático - Viajar & Trabalhar", da VidaEdu, com um plano de "estudo + trabalho". Mas ainda não tem emprego. Isso não a preocupa. "Eu trabalho em qualquer coisa. Sempre trabalhei a minha vida toda. Fui sempre eu que paguei os meus estudos", diz.

A experiência do líder da Sonae

Paulo Azevedo surpreendeu a plateia num almoço-debate da ACEGE - Associação Cristã de Empresários e Gestores, quando revelou que a sua família tirou dois meses para ir trabalhar numa ONG em Moçambique. A história foi contada pela revista Visão em Novembro de 2010, num artigo com o título "Uma lição de vida". O gestor preparou a viagem durante quatro anos e houve três razões que o levaram para aquele país africano com a mulher e os três filhos. Primeiro, foi o desejo de manter a unidade da família, tendo em conta que há pouco tempo para estarem juntos devido à sua actividade profissional. Por outro lado, preocupava-o a educação dos filhos. "Eu e a minha mulher reflectimos muito sobre 'as dificuldades' de termos filhos nascidos e criados na Foz [do Porto], onde os problemas sociais não são visíveis. Quisemos mostrar-lhes outras realidades ", afirmou o empresário citado pela revista. E, por fim, a filantropia. "Recebemos muito, mas também devemos muito. É uma forma de retribuição."
cotacao O ganho para a empresa é quando a pessoa regressa, porque vem "muito mais motivada, mais agradecida e com um conhecimento melhor", diz Paulo Martins, da VidaEdu. 
Paulo Azevedo admitiu que teve receio de que o seu projecto em família não fosse aprovado pela Comissão de Nomeação e Remunerações da Sonae, presidida na altura pelo pai, Belmiro de Azevedo. Mas a reacção foi positiva. Paulo esteve com a família no interior de Moçambique, em Chimoio. Para chegar lá, tiveram de viajar 1.200 km desde Maputo numa carrinha velha Toyota Hiace. O destino foi a Associação "Tios de Moçambique", que tem por missão dar apoio a órfãos em comunidades com forte impacto do VIH/SIDA. A experiência foi "uma aprendizagem". Para a família, "as expectativas foram excedidas" porque aproximou mais os dois filhos adolescentes e tornou-os mais responsáveis, explicou o gestor. Também ele tirou lições. "O modelo de economia de mercado é bom a gerar riqueza, mas é mau a distribuí-la. Sem estragar a criação de riqueza - porque senão não poderíamos distribuí-la -, temos de trabalhar em melhores modelos de distribuição de riqueza."

Só daqui a seis meses Silvana Barreto poderá contar as lições que vai aprender na Austrália. Para já, acredita que a experiência a vai fazer crescer como pessoa e, principalmente, como profissional. Mas há uma coisa de que não tem dúvida. "Acho que foi uma das melhores decisões que tomei." Guilherme Miranda, que já anda de mochila às costas, também não se arrepende. "Já sou uma pessoa bastante diferente do que era quando comecei." Explica que um "gap year" permite "afastar-nos do nosso quotidiano, faz-nos colocar as 'coisas', as pessoas e a nós próprios no devido lugar". O professor deixa um conselho. "Quando sentimos o apelo da mudança, devemos seguir a intuição. Caso contrário, a permanência em situações de aparente segurança e de 'falsa' estabilidade, por medo da mudança, poderá conduzir ao cansaço e ao rápido desgaste." Guilherme recorda um provérbio popular queniano que diz: "Viajar é aprender."



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