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O desaparecimento de Zeca Afonso

As gravações originais do músico português, e de alguns dos seus pares mais gloriosos, estão desaparecidas, o que é mais um golpe cruel na protecção do nosso património e da nossa cultura.

04 de Março de 2017 às 10:15
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Nos últimos dias, tem sido narrada em alguns dos nossos órgãos de comunicação social, especialmente na Antena 1 e no Público, uma história fascinante. Tentando aqui resumi-la, o que de algum modo retira parte do perfume de mistério e poesia que envolve a história, ninguém sabe muito bem onde estão as gravações originais, os "masters" de alguns dos monstros sagrados da música portuguesa, entre eles os de Zeca Afonso, Fausto, Adriano Correia de Oliveira, bem como os relacionados com leituras de poetas como Sophia ou Torga.

O desconhecimento deve-se à falência, em 2008, da editora detentora dos títulos e dos objectos, Movieplay, que terá ou não, vendido os "masters" a uma entidade americana não identificada, para já. Dos factos apurados, até agora, ressalta um clima de incerteza e contradição. A referida editora faliu e vendeu parte do seu espólio à entidade americana. Mas não é ainda claro que esse espólio tenha incluído os "masters", e estes poderão estar num armazém em Alcântara, pertencente a uma loja de discos que a editora teve nesse local e que, entretanto, foi encerrada. Segundo técnicos de som e de estúdio ouvidos pelos media, a última vez que os "masters" foram usados foi em 1991 ou 1992.

Existem várias dimensões muito interessantes que devemos analisar nesta história. A primeira é que, como aborrecidamente tenho escrito neste espaço infinitas vezes, não temos ainda, em Portugal, uma consciência natural e entranhada de património. Qualquer que seja a área a que dediquemos atenção, dos objectos rurais à pintura, detectamos que a noção básica de património não existe. Acompanhando esta desolação, está também um estado de total ausência de atribuição de valor a tudo aquilo que deveríamos conservar.

Ao mesmo tempo em que no mundo inteiro todos os objectos sociais e culturais produzidos, de um vestido de um designer aos "masters" da Blue Note, são transaccionados por valores altíssimos, nós continuamos a achar que os nossos são relíquias aos quais não sabemos muito bem que destino dar. Finalmente, não existe vedação e sanção. Ou seja, a política estatal e a lei existente contemplam uma noção muito limitada de património, e muito antiquada, e bens que são a nossa cultura podem ser vendidos sem que o proprietário sofra qualquer espécie de punição. O que este cenário provoca, obviamente, tem efeitos dramáticos.

Por um lado, não é feita aquela pedagogia, invisível mas muito eficaz, assente na noção, entendida por qualquer cidadão, de que os bens devem ser protegidos. Por outro, fontes e símbolos fundamentais da nossa cultura desaparecem e flutuam durante anos, ou para sempre, em territórios desconhecidos. Zeca Afonso e outros dos nossos merecem muito mais. 


*Nota ao leitor: Os bens culturais, também classificados como bens de paixão, deixaram de ser um investimento de elite, e a designação inclui hoje uma panóplia gigantesca de temas, que vão dos mais tradicionais, como a arte ou os automóveis clássicos, a outros totalmente contemporâneos, como são os têxteis, o mobiliário de design ou a moda. Ao mesmo tempo, os bens culturais são activos acessíveis e disputados em mercados globais extremamente competitivos. Semanalmente, o Negócios irá revelar algumas das histórias fascinantes relacionadas com estes mercados, partilhando assim, de forma independente, a informação mais preciosa.


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