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Mónica Ferro: Portugal tem escapado a tentações mais populistas

Para Mónica Ferro, existe um legado civilizacional na política portuguesa que tem impedido a afirmação do fenómeno populista no país. A poucos dias de assumir o cargo de directora regional do Fundo das Nações Unidas de Apoio à População, a ex-deputada do PSD e agora ex-professora lembra que "as conquistas não estão escritas na pedra" e, por isso, rejeita abandonar o seu feminismo militante.

Pedro Elias
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Depois de António Guterres, é agora a vez de também Mónica Ferro integrar o sistema das Nações Unidas. Os portugueses têm qualidades especiais para construir pontes e mediar conflitos?

Temos uma vocação e capacidade para influenciar a tomada de decisão. Os portugueses são apreciados e percebidos dentro do sistema das Nações Unidas como pessoas criativas, que têm como primeira preocupação aproveitar o melhor de cada um. São vistos como construtores de pontes, como pessoas capazes de alavancar o saber dos outros e de construir equipas. Num ambiente multiétnico, multicultural e multirreligioso, como é o das organizações internacionais, esta visão universalista e humanista é uma mais-valia muito importante.

 

De onde vem essa capacidade? Já o pensador Gilberto Freyre falava no luso-tropicalismo para caracterizar a relação de Portugal com as antigas colónias, por exemplo.

É algo que se nota. Na minha experiência internacional, sempre percebi que os portugueses têm a reputação de ter grande capacidade de dialogar com todas as culturas e religiões. E nunca senti, mesmo trabalhando com países africanos, que a nossa presença colonial ainda nos pesasse negativamente. Nunca senti que houvesse algum tipo de ressentimento pelo nosso passado colonial como há em relação a muitas partes do mundo. Isso tem que ver exactamente com a ideia preconcebida de que somos um povo de grande abertura. E, tendo em conta essa nossa vocação e capacidade de influenciar a tomada de decisão, eu diria até que temos poucos portugueses nas Nações Unidas.

 

Temos hoje mais de 100 portugueses em cargos relevantes no sistema das Nações Unidas.

Se compararmos as candidaturas muito bem-sucedidas de portugueses, e basta pensar na mais bem-sucedida de todas, que é a de António Guterres para secretário-geral das Nações Unidas, podemos concluir que os portugueses se candidatam pouco às organizações internacionais. Há uma certa percepção interna negativa das nossas competências e das nossas capacidades, o que faz com que exista alguma inibição na candidatura a organizações internacionais. A presença de portugueses nessas organizações pode ser um desígnio nacional, uma vez que isso contribui para a credibilização do país e até para a valorização da língua, ao constituir-se um grupo, ou um lóbi mais forte a favor da utilização do português como língua de trabalho das organizações internacionais. É que, apesar de os funcionários internacionais fazerem uma espécie de derrogação temporária da sua nacionalidade, carregam consigo os valores de toda uma cultura.

 

Serão essas características que explicam os elogios dirigidos a Portugal em termos da política no acolhimento de refugiados?

Muitas dessas políticas de cooperação, de recepção e integração de refugiados são constantes, não sofrem alterações por haver mudança de partido político a exercer a governação. Noutros países, isso não é sempre assim. As políticas de integração têm muitas vezes imagens partidárias associadas. Em Portugal, tal não acontece e isso resulta exactamente de um acervo civilizacional que está na nossa identidade.

 

Abrange todo o espectro político nacional?

Perpassa todo o espectro político. As decisões tomadas na Assembleia da República sobre essas matérias são relativamente consensuais. Muda a ênfase que alguns partidos colocam em questões mais relativas a segurança, que outros colocam na questão da protecção social, mas há um grande consenso nacional de que esse é um desígnio civilizacional.

 

Esse consenso e moderação contribuem para que Portugal esteja a passar ao lado do recrudescimento do radicalismo e do populismo que vemos um  pouco por toda a Europa?

Tivemos eleições na Holanda, teremos em França e, a breve trecho, também na Alemanha, e em alguns dos grande "players" do processo de integração europeia tem havido um aumento de discursos populistas, um discurso de crítica ao exercício da política, porque o populismo é isso, é o desmontar da política, é o dizer que os políticos são todos iguais. Portugal tem escapado a estas tentações mais populistas. Mesmo durante a grave crise financeira que enfrentámos conseguimos manter-nos à margem destes fenómenos e isso tem que ver com a experiência democrática do país que, sendo recente, é sólida e está enraizada. As narrativas populistas estão a crescer e verificamo­-las numa série de países. É um perigo do ponto de vista da construção europeia, um perigo para o modelo de integração que seguimos nos últimos anos.

 

Não é também um perigo para a ONU, se olharmos, por exemplo, para o que se passa nos Estados Unidos?

O recrudescimento do discurso populista que, em algumas margens, chega a ser xenófobo e discriminatório gera preocupações. E isso põe em causa os valores civilizacionais sobre os quais a UE está construída. E é claro que tem um impacto negativo também no modelo institucional liberal global. A ONU é construída acreditando que a colaboração entre os povos é possível, que a paz e o direito se constroem através das instituições internacionais. Portanto, este discurso populista, que é de fechamento nacional e que afecta os próprios alicerces das Nações Unidas, torna muitas vezes os países menos solidários. E podemos falar dessa solidariedade quer no que diz respeito à voz política na tomada de posição, quer no que diz respeito ao financiamento das instituições. É um momento de charneira em todo o edifício institucional internacional.

 

As posições de Donald Trump em relação ao multilateralismo colocam em causa a ordem internacional saída do pós-guerra e da Guerra Fria?

Tenho falado muitas vezes da importância de ter os EUA muito engajados nesta ordem internacional liberal e institucional. Os EUA são um grande actor das relações internacionais e têm uma grande influência, e não apenas pelo facto de serem grandes financiadores da ONU. É um país que, quando suporta uma política pública, dá a essa mesma política uma visibilidade que poucos países dão. O que nos preocupa é a mensagem que pode enviar um afastamento dos EUA face ao sistema liberal baseado nos valores da democracia, da paz pelo direito, da cooperação internacional através das organizações internacionais. Um afastamento preocupa-nos sobretudo por poder pôr em causa a ideia de mundo que as Nações Unidas construíram ao longo de 70 anos.

 

A presença de portugueses nas organizações internacionais pode ser um desígnio nacional.  

 

Chegar à ONU e assumir o cargo de directora da Representação Regional em Genebra do Fundo das Nações Unidas de Apoio à População (FNUAP) é o realizar do sonho de uma vida, ou um passo nesse sentido?

Diria que é um passo. Quando olho para trás e penso no caminho para chegar até aqui, vejo que sempre dediquei a esmagadora maioria do meu tempo de investigação, leccionação e actividade cívica e política às questões das organizações internacionais. Lecciono as cadeiras de Nações Unidas e de organizações internacionais há quase 20 anos na faculdade, fiz a tese de mestrado sobre o tema, ajudei a fundar ONG nesta área. Fui fazendo uma série de caminhadas e quando, no ano passado, este lugar vagou em Genebra decidi candidatar-me por achar que é um passo que faz sentido.

 

É um passo numa caminhada que quer trilhar até onde?

Tenho sido criticada por dizer muitas vezes que o meu objectivo é ajudar a construir um mundo melhor. Há pessoas que consideram que esta minha afirmação é resultado de algum idealismo, de uma certa visão inocente do mundo. Mas é verdade, é mesmo o que eu quero fazer. Agora vou tentar fazê-lo dentro do FNUAP.

 

Pretende renovar este primeiro mandato?

É um mandato de quatro anos que pode ser renovado. Há aqui a ideia de que é uma carreira nova que se me abre. Não sei se serão muitos anos no FNUAP, provavelmente sim.

 

O fundo tem como objectivo que mulheres e jovens, em especial dos países em desenvolvimento, possam ter vidas melhores e mais dignas. O seu percurso, enquanto activista dos direitos humanos e da igualdade de género, foi importante para esta nomeação?

Foi fundamental. Não tenho dúvidas de que no concurso eu cumpria os pré-requisitos estipulados mas, nas avaliações, o perfil de feminista e activista pelos direitos humanos foi uma grande mais-valia a meu favor.

 

E o facto de ser mulher?

O FNUAP tem uma política activa de procura de paridade. Não faria sentido que uma organização que se centra no empoderamento das raparigas, das mulheres e dos jovens como as grandes alavancas para o desenvolvimento humano e global, não tivesse internamente um compromisso com essa procura.

 

O que contribuiu na sua formação para que o feminismo se tornasse numa característica central da sua personalidade?

Ser feminista é uma reflexão, um processo que se vai desenvolvendo. Logo, é um estado que se atinge em idades muito distintas. É engraçado ver jovens muito jovens fazerem o diagnóstico da desigualdade entre homens e mulheres e afirmarem-se imediatamente como feministas. Da discriminação, às vezes latente, outras vezes evidente, na nossa sociedade. Mas a verdade é que há outras mulheres que o fazem mais tardiamente nas suas vidas. Porque precisam de experimentar essa discriminação para a perceberem, para despertarem nesse sentido. Sinto que, desde muito cedo, percebia o mundo como sendo uma realidade desigual.

 

Não foi preciso sentir-se discriminada para alcançar essa consciência?

Não. Os fenómenos mais antigos de que me lembro talvez fossem os da organização doméstica das tarefas. Cresci numa família em que as mulheres desempenhavam a quase totalidade das tarefas dentro do lar. Os homens eram dispensados de todas essas actividades porque as mulheres foram socializadas nesse sentido. Lembro-me de um episódio caricato: sempre que havia trabalhos de casa na escola, o que se escrevia no quadro era que "os meninos devem fazer o trabalho de casa". Fiquei de castigo e sem poder ir ao recreio porque não fiz o trabalho de casa – porque era para os meninos, não era para as meninas. E lembro-me de me ter feito sempre bastante confusão usar o género masculino para designar o género humano.

 

Faz-lhe confusão olhar para a Carta Internacional dos Direitos do Homem?

Muita. Porque temos as expressões "pessoa" e "humanos", que são muito mais integradoras e agregadoras. Tive consciência desde cedo de que a linguagem constrói o nosso mundo. E, se temos palavras que nos permitem construir uma realidade muito inclusiva, porque é que haveremos de fazer de outra maneira? O lema do ISCSP, a faculdade em que nós estamos, é "valorizamos pessoas". Simples.

 

As sociedades mais liberais parecem caminhar num sentido de maior igualdade de género. Ainda faz sentido um feminismo muito arreigado?

Tem havido muitos progressos. Olhando para Portugal, vemos que, em matéria legislativa, somos dos países mais avançados do mundo. Podemos sair do espaço europeu e comparar-nos a qualquer outro país do mundo em termos legislativos. Temos um patamar de assunção de igualdade muito grande. Mas isto não impede que, em Portugal, as mulheres ganhem menos 16% do que os homens, nem impede que as mulheres continuem a desempenhar a dupla jornada – trabalham fora e dentro de casa, como se verifica de acordo com o último questionário à ocupação do tempo feito pelo INE. E isso também não impede, por exemplo, que tenhamos uma taxa de violência doméstica que nos deve envergonhar enquanto país e sociedade. As conquistas não estão escritas na pedra. É preciso continuarmos a ser vigilantes e empenhados para que não haja retrocessos. Essa é a minha grande preocupação em alguns países. Noutros, naqueles onde a mulher ainda não pode ser titular de uma conta bancária e não pode conduzir, é claramente o avanço da agenda.

 

E em Portugal?

É preciso consolidar a agenda e fazer com que a distância entre a prática e a teoria seja cada vez menor.

 

As conquistas não estão escritas na pedra. É preciso continuarmos a ser vigilantes e empenhados para que não haja retrocessos. 

 

A questão das quotas ainda é fundamental, tanto na política como no mundo empresarial?

As quotas não são uma bala de prata, mas são uma medida temporária que permite construir uma massa crítica que em muitos países ainda não está consolidada. Dou o exemplo do eurodeputado polaco [Janusz Korwin-Mikke] que foi condenado pelas declarações que proferiu acerca das mulheres. Li na imprensa uma série de pessoas a condenar a decisão do presidente do Parlamento Europeu, sustentando que o eurodeputado estava apenas a exercer a sua liberdade de expressão. Mas não estava. O valor da igualdade entre homens e mulheres não está aberto a discussão, motivo pelo qual se encontra consagrado nas constituições. Assim como está a igualdade entre todos os seres humanos e a não possibilidade de ser aceitável um discurso racista e xenófobo, porque não está dentro do âmbito do que podemos considerar a liberdade de expressão.

 

E concorda com o primeiro-ministro António Costa ao considerar que as declarações de Jeroen Dijsselbloem, presidente do Eurogrupo, foram "racistas, xenófobas e sexistas"?

As declarações do líder do Eurogrupo revelam uma percepção errada, estereotipada sobre uma parte da Europa, a do Sul. Além disso há uma carga sexista que não pode ser tolerada, nem como tentativa de piada fácil. Um líder que quer inspirar respeito e autoridade não pode pensar assim.


 

Acontecimentos recentes na Rússia e na Turquia mostram que estamos perante um retrocesso civilizacional, em especial no que diz respeito aos direitos das mulheres?

Os direitos das mulheres são sempre os que estão sob maior ameaça. Sempre que olhamos para uma sociedade e constatamos que pode estar a existir um retrocesso em matéria de direitos humanos, a probabilidade de que esse retrocesso seja feito à custa dos direitos das mulheres é muito grande. Especificamente os seus direitos sexuais e reprodutivos.

 

Outro problema do nosso tempo é a crise dos refugiados, que se agravou nos últimos anos. O fundo terá de reorientar-se mais para esta questão?

As organizações têm de ir lendo as realidades em que actuam e têm de ter a flexibilidade necessária para dar respostas a estas emergências que vão sendo criadas e que nos vão sendo sinalizadas. Isto tem que ver com a necessidade de investir mais em determinadas áreas e reforçar a capacidade de resposta.

 

António Guterres dizia que "temos de nos focar mais em resultados e menos no processo, mais nas pessoas e menos nos processos". Com processos burocráticos e de financiamento, muitas vezes considerados paralisantes, existe flexibilidade para dar as respostas necessárias em tempo útil?

Essa é a questão do novo tempo. As organizações têm de perceber que as solicitações vão sendo distintas, até porque vamos tendo resultados em determinadas áreas e portanto é preciso consolidá-los, mas isto também significa que há outros que despontam. A questão dos refugiados não é nova mas, nos últimos anos, colocou-se com uma intensidade muito superior à que esperávamos e, portanto, as organizações precisam de se reformar. Em relação à burocracia, ninguém compreende que uma organização internacional possa demorar tanto tempo, como António Guterres dizia, a enviar para o terreno os produtos ou as pessoas que são necessárias para desenvolver um projecto. Há uma consciência de que a organização tem de ser mais ágil na actuação, porque muitas vezes as necessidades são urgentes.

 

Ser feminista é uma reflexão, um processo que se vai desenvolvendo. Tive consciência desde cedo de que a linguagem constrói o nosso mundo. 

 

Não se compadecem com os processos burocráticos instituídos?

O mundo não nos vai perdoar se continuarmos a demorar tanto tempo nas respostas, porque, nesse tempo, morrem pessoas. É importante ter consciência disso. E as organizações têm de aprender a comunicar melhor o seu impacto na vida das pessoas. Comunicar melhor porque é que nós, cidadãos, devemos contribuir com os nossos impostos e o nosso apoio político e voluntariado para estas organizações internacionais.

 

Foi uma grande entusiasta dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM), estabelecidos em 2000 para 2015. Como vê o falhanço no cumprimento desses objectivos?

Os ODM foram a narrativa mais mobilizadora de sempre em torno do desenvolvimento. Tivemos, pela primeira vez, a possibilidade de dizer às pessoas o que significava ser desenvolvido. A abordagem pragmática e mensurável foi fundamental para os anos que se seguiram. Os ODM tinham dois grandes problemas, um deles tinha que ver com o facto de serem pouco ambiciosos.

 

Mas nem assim foram atingidos.

Havia um problema quase de definição e os objectivos foram entendidos tendo como alvo os países em desenvolvimento, financiados pelos países desenvolvidos e, portanto, parte do mundo ficou de fora da aplicação dos ODM. Outro dos problemas teve que ver com o financiamento. Alguns objectivos foram, de uma forma sistemática e crónica, subfinanciados. É o caso do acesso universal à saúde sexual e reprodutiva, com o qual vou trabalhar mais directamente.

 

Como vê a capacidade da ONU para implementar a Agenda 2030?

A ONU está mais bem equipada do que nunca para promover esta Agenda. Nós sabemos o que é que resulta, o que é que tem de ser feito e como fazê-lo. Este é um momento de ouro da cooperação internacional. Mas é também um momento em que há uma grande contestação aos grandes fenómenos multilaterais, às organizações internacionais, à UE, à própria ONU, e isso significa que é preciso haver uma abordagem ainda mais criativa. Este é o momento ideal para o fazer, um momento em que estamos tão sob fogo cruzado de países.

 

Não é mais difícil fazê-lo neste contexto?

Por ser mais difícil é que é o momento em que a organização tem de se afirmar inequivocamente.

 

Se não o fizer, corre o risco de perder relevância?

Perderá certamente. Quer do ponto de vista dos seus membros, porque os Estados têm de sentir que vale a pena estar na ONU, quer para as pessoas. Esse risco está sempre presente.

 

Mas hoje é maior, mais latente?

É latente, mas pouco provável. Acredito que a existência das Nações Unidas nunca estará em causa. A eficácia com que cumpre os objectivos para os quais foi criada é que vai ser a verdadeira prova do algodão.

 

A sempre falada reforma do Conselho de Segurança (CS) da ONU é determinante para conferir maior legitimidade na capacidade de acção da organização?

A credibilidade da organização joga­-se muito em questões como a da reforma do CS. Diz-se muitas vezes que a cara da organização é o secretário-geral, mas que um dos seus grandes cartões-de-visita é o CS e as operações de paz. Tem que ver com a representatividade, com a eficácia da organização e tem que ver com um sinal muito claro que se dá aos povos, que é a organização poder adaptar-se. O risco é que, se o não fizer, volte a perder credibilidade.

 

Em termos de política interna, encara agora como mais credível a solução de Governo encontrada em Portugal?

Não fui uma das maiores adeptas desta solução governativa, até porque significou o fim do curtíssimo Governo do qual fiz parte [secretária de Estado da Defesa].

 

Sabia de antemão que seria de curta duração.

Provavelmente, mas não estava escrito nas estrelas.

 

Tinha sido transmitido pelos partidos da esquerda parlamentar ao então Presidente Cavaco Silva.

Foi uma solução que surpreendeu muitos portugueses por ter sido a primeira vez a acontecer. Não é uma solução única no espaço europeu, é aliás muito normal na Europa. Temos uma série de exemplos em que não é o partido mais votado que lidera a coligação que se forma. Foi uma demonstração de que o sistema político português é um sistema maduro. Embora tenha havido a preocupação de que uma agenda mais antieuropeia, que é vocalizada pelos partidos mais à esquerda, pudesse transbordar para o programa de Governo. Isso foi seguido com preocupação pelo centro e centro-direita.

 

O poder não caiu na rua e Portugal continua a funcionar como uma democracia estável que é. 

 

E pelo Presidente da República, que pediu as tais garantias sobre a pertença do país à UE, ao euro e à NATO.

A verdade é que ninguém do centro e centro-direita estava interessado em que se questionasse a pertença de Portugal ao euro, às instituições internacionais, mesmo as de cariz militar como a NATO e, portanto, não deixa de ser interessante que a grande preocupação fosse a pertença a estes espaços multilaterais, de grande integração.

 

Surpreendeu-a a salvaguarda dada pelo actual Governo?

Não me surpreendeu porque quem passou quatro anos no Parlamento com o PS conhece o PS, sabe que é um partido que sempre se empenhou na integração europeia, mostrando não ter permeabilidade ao discurso de isolamento. A solução governativa parece estável, não deixa de ter alguns episódios, sobretudo nos debates no Parlamento, mas o poder não caiu na rua e Portugal continua a funcionar como uma democracia estável que é. Não tendo gostado nem do início nem da forma como o processo aconteceu, no fim do dia retiramos uma lição de estabilidade para o país.

 

E os resultados conseguidos, em especial o défice, surpreenderam-na?

Não, porque me habituei a não ter uma visão puramente conjuntural ou a olhar somente para a espuma dos dias. Sabemos que todos os processos são longos, resultam de trabalho feito antes de nós. O país não começou quando o PSD chegou ao Governo nem quando o PS chegou. Isto é algo que os portugueses devem aprender quando olham para a política nacional. Estamos a falar de grandes ciclos. É interessante e desejável, até para a própria saúde do regime português, que haja mudanças na forma como a política é feita e que haja outros valores a aparecerem na política nacional.

 

Este Governo vai chegar ao fim da legislatura?

Acho que chega ao fim. A maioria parlamentar que o suporta tem dado provas de que quer que chegue ao fim e a verdade é que sabemos que esta é uma solução governativa que assenta exactamente numa maioria parlamentar que, estando a ser experimentada pela primeira vez, tem permitido ao PS adoptar algumas medidas que eu há dois anos diria que eram impossíveis.

 

E a sua vida política e académica chegou ao fim, ou pretende regressar?

Ainda estou tão esmagada pela decisão de ir e pela mudança que terei de fazer. Parto para Genebra na próxima semana e as minhas filhas ficam cá para terminar o ano lectivo, o que já vai provocar um stress acrescido sobre mim e o resto da família. Só quando terminarem o ano lectivo é que nos reagrupamos todos em Genebra. Mas estou muito feliz porque sinto que as portas do ISCSP continuam abertas para um dia, decidindo regressar a Portugal, poder voltar àquilo que sou e sempre fui: uma professora activista dos direitos humanos, uma professora que foi deputada. Foi este meu caminho, todo junto, mas sempre sendo professora, que me trouxe até aqui.

 

Foi professora, deputada e secretária de Estado durante 26 dias. Com um currículo reforçado com esta experiência na ONU, poderá regressar a Portugal para desempenhar cargos ainda mais relevantes?

Não digo que não. Esses desafios, se existirem no futuro, serão ponderados com toda a seriedade.

 

Mas ficam mais próximos?

Talvez fiquem. Acredito que esta passagem no FNUAP vai ser a experiência da minha vida, creio que vai fazer de mim uma pessoa mais capaz politicamente, mas também civicamente. Não enjeito desafios futuros.

 

Daí que a vida partidária não fique colocada de parte?

Fica suspensa. O lugar de funcionário público internacional é um lugar de grande independência, portanto, não pode haver uma associação directa entre mim e actividades partidárias, mas não deixo de ser a Mónica Ferro e de ter o meu passado e a imagem que fui construindo ao longo destes anos, que me estão colados à pele e que não enjeito.

 

Nos últimos anos, marcou presença constante na rádio, televisão, jornais e revistas, fazendo opinião sobre política, essencialmente política internacional. Vai ser difícil deixar de emitir opiniões publicamente?

O bichinho da analista internacional e da comentadora não vai sair de mim. Vou deixar de poder fazer comentários públicos com tanta frequência. Mas não perco a liberdade de pensar e de analisar. Talvez tenha é de aprender a comunicar de outra forma. 


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