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Massimo Mazzeo: Não vejo medo do futuro em Portugal. Vejo incerteza, mas não medo

Nasceu em Trento, Itália, é filho de uma velha família siciliana, aprendeu piano, violino, viola-d'arco e é hoje o director artístico da orquestra barroca Divino Sospiro e do Centro de Estudos Setecentistas de Portugal. Tem levado os “Serões Musicais” ao Palácio da Pena, em Sintra.

Miguel Baltazar
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Não existe outro lugar no mundo onde possamos viajar 600 anos em poucos metros. Assim é Sintra nas palavras do maestro e violonista italiano Massimo Mazzeo, director artístico da orquestra barroca Divino Sospiro e do Centro de Estudos Setecentistas de Portugal, que organizou, em conjunto com a Parques de Sintra - Monte da Lua, os Serões Musicais no Palácio da Pena.  As noites barrocas esgotaram no mês de Março e serão retomadas em Junho no Palácio Nacional de Sintra. Massimo Mazzeo nasceu em Trento, é filho de uma velha família siciliana, aprendeu piano, violino, viola-d'arco, música de câmara e quarteto de cordas, estudou no Conservatório de Veneza, integrou orquestras dirigidas por maestros como Leonard Bernstein e Zubin Mehta, viveu em vários países e, no final dos anos 90, chegou a Portugal. "Costumo dizer que vim cá para visitar os amigos e que ainda estou de visita..."

Nasci na cidade de Trento, em Itália, e foi o meu pai que me injectou o bichinho da música. Ele cultivava o sonho de ser artista mas, como era o mais velho de sete irmãos de uma antiga família siciliana, teve de suceder a seu pai no sustento da família. O meu avô, Eduardo Mazzeo, trabalhava nos correios, ele tinha emigrado da Sicília para o Norte de Itália e a sua imaginação levou-o a criar uma máquina que distribuía a correspondência no Sul do país e no estrangeiro, um sistema que foi adoptado a nível nacional. No fundo, ele foi o criador da mecanização dos correios. Naquela altura, a seguir à Segunda Guerra Mundial, Itália era um país destruído e foi reconstruído com a ajuda de mentes brilhantes, de pessoas simples, sem doutoramentos, mas com muita fantasia, que criaram um sistema que ainda hoje é copiado em todo o mundo, o sistema de pequenas empresas que faziam um trabalho especializado absolutamente ímpar.

A par do trabalho dos correios, o meu pai continuava a tocar guitarra. Como filho da libertação de Itália, ele adorava o jazz que os americanos levaram para o território e mandava vir discos directamente dos Estados Unidos. Até aprendeu a tocar trombone. Mas também gostava muito de música clássica e ia coleccionando discos e livros. Eu tenho uma das maiores bibliotecas e discotecas de música clássica da minha cidade, que doei à biblioteca municipal.

Comecei a tocar violino e piano aos cinco anos, ainda me lembro daquelas tardes de Primavera em que, por trás da janela, via os meus amigos a jogar à bola. Mas tocar um instrumento também era para mim uma grande fonte de prazer. O meu pai não fez desta minha possibilidade uma questão de amostra social, ele acreditava mesmo que a música iria formar-me enquanto pessoa, ele acreditava realmente na cultura e achava que a beleza iria salvar o mundo, para citar Dostoiévski. Hoje, penso que o mundo é que deverá salvar a beleza e não o contrário. Estamos a destruir aquilo a que chamo de ecossistema da humanidade, que é a beleza, que é a cultura. Cada animal, cada planta, tem um ecossistema e o nosso é o da cultura.

O meu irmão também é músico, é violinista e mora na Suécia, coitado, vive naquela sociedade onde as pessoas têm muitos direitos, mas vivem como se fossem ratos numa gaiola. É um país muito eficiente, muito eficaz, onde tudo funciona, mas depois não existe mais nada. Antes de nascer, a primeira filha do meu irmão já tinha um plano de dentista até aos oito anos! Cheguei a viver na Suécia durante um mês, mas fiz um ângulo de 180 graus e fui para sul. Não acredito em sociedades perfeitas e, se existirem, são extremamente aborrecidas.

Trabalhei em vários países. Todos temos uma alma por preencher, há quem o faça lendo livros ou outras actividades, eu precisava de conhecer sítios diferentes, com tradições diferentes, com línguas diferentes, com sistemas sociais e políticos diferentes. Itália é um país lindíssimo e eu vivi em cidades maravilhosas como Roma e Veneza - uma ilha osmótica que se mistura com a água e com o céu, uma ilha que está suspensa num tempo indefinido, uma máquina do tempo - mas precisava de sair do país. Itália é uma loucura, o sistema não funciona, está sobrecarregado, é hiperburocrático e não inventa nada de novo. Temos os palácios feitos nos séculos XIV, XV, XVI, temos um legado estético muito forte, mas o resto é um delírio completo.

Vivi em Inglaterra, na Dinamarca, na Suécia, mas em nenhum destes países fiquei com a sensação de que seriam lugares de permanência, como me aconteceu em Portugal. No resto da Europa havia um certo sentimento de "déjà vu" de coisas que foram feitas, desfeitas e refeitas de igual forma, mas com uma máscara diferente. Quando vim para cá, no final dos anos 90, encontrei um país que não estava sobrecarregado de actividades e por isso tinha outra disponibilidade para ouvir e para implementar novos projectos. Encontrei um país sem medo do futuro. Ainda hoje não vejo medo do futuro em Portugal, vejo incerteza, mas não vejo medo.

Portugal não foi o país que eu escolhi, foi realmente o país a escolher-me. Costumo dizer que vim cá para visitar os amigos e ainda estou de visita.

Na altura, tive de perceber como poderia integrar-me numa sociedade onde a forma de pensamento era diferente, onde a minha alegria era muitas vezes vista com suspeita e desconfiança, onde existe uma espécie de cautela na aproximação às pessoas. No início, até achava que os portugueses eram uns latinos melancólicos, mas também conheci gente bastante alegre e este é, de facto, o país onde me sinto bem, onde comprei uma casa, onde me sinto parte do sistema.

Por coerência comigo próprio, além de ter viajado por vários países, viajei por várias formas musicais, não sou capaz de pensar a minha vida sempre agarrado à mesma coisa. Trabalho com música antiga, mas não estou dentro de uma caixinha. Para compor um mosaico, é preciso que os pedacinhos de vidro colorido sejam muitos.

A dada altura da minha vida colaborei com artistas da cena pop ou da cena rock, depois trabalhei mais no âmbito de música moderna, mas sempre me senti atraído pelo mundo da ópera e estive desde cedo ligado à música barroca. Afinal, venho do país que a inventou. Achei interessante entrar na área da interpretação historicamente informada, o que implica "sujar" um pouco as mãos com questões como a musicologia, a pesquisa, a investigação. Por exemplo, li as cartas que o Beethoven enviava aos amigos, políticos e príncipes, e este contacto mais directo com a sua personalidade permitiu-me perceber o carácter, a força e a determinação do compositor. Gosto de perceber que aqueles que julgávamos intocáveis são tudo menos que perfeitos, eles também se zangavam e diziam palavrões. Gosto de olhar para eles e saber o que comiam, o que faziam. O Giuseppe Verdi gostava imenso de agricultura, cavava os campos, e essa relação com a terra está na sua música. Continuo a olhar para as obras destes compositores como obras de génios, mas de génios onde o sangue e a carne também estavam a pulsar.


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