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Maria Filomena Mónica: Em Portugal, há um selo sobre a desigualdade. Uma espécie de “apartheid social”
Para a socióloga Maria Filomena Mónica, existe, em Portugal, a ideia paternalista de que os pobres são um fruto natural da sociedade e que os ricos têm de ajudá-los. É sobre isso que fala no seu novo livro “Os Pobres”.
Para a socióloga Maria Filomena Mónica, a composição da sociedade portuguesa é de tal forma desigual e essa desigualdade é tão antiga que surge aos olhos das pessoas como uma coisa normal. Há a ideia paternalista de que os pobres são um fruto natural da sociedade e que os ricos têm de ajudá-los. É sobre isso que fala no seu livro "Os Pobres", escrito depois de encontrar um diário da adolescência onde testemunha a sua ida à Rua dos Sete Moinhos, em Lisboa. "As freiras levaram-nos a um bairro-de-lata para podermos ver pobres e, assim, treinar-nos para exercer a caridade. E, exercendo a caridade, iríamos rapidamente parar ao céu. Eu não considerei que ir parar rapidamente ao céu justificasse aquilo que vi", diz a socióloga. "A caridosa burguesia tradicional cultivou a pobreza dos outros com um carinho enternecedor. Nunca lhe passou pela cabeça que talvez fosse possível acabar com ela ou, pelo menos, tratar muito seriamente disso."
A Maria Filomena Mónica pertencia a uma família que tinha os "seus" pobres?
Não nesse sentido. Eu vivia numa zona de classe média alta, na Rua Rodrigo da Fonseca, numa casa que teria 13 ou 14 assoalhadas, onde havia a escada dos senhores e a escada das criadas e dos pobres, mas eram pobres "avulso". Eu tinha uma família pobre, sim, mas que me tinha sido atribuída pelas freiras. As freiras pegaram em nós, tínhamos uns 16 anos, e levaram-nos a um bairro-de-lata para podermos ver pobres e, assim, treinar-nos para exercer a caridade. E, exercendo a caridade, iríamos rapidamente parar ao céu. Eu não considerei que ir parar rapidamente ao céu justificasse aquilo que vi e fiquei absolutamente atónita. O meu primeiro contacto com os pobres foi algo anómalo – como é que uma rapariga com 16 anos nunca tinha visto pobres?! Eu via mendigos a pedirem na rua quando ia ao Chiado com a minha mãe, mas a pobreza que vi naquele bairro, na Rua dos Sete Moinhos, era-me desconhecida. Acho que foi a partir da constatação desta desigualdade social que eu me tornei de esquerda, ainda que muito vagamente e muito romanticamente.
No seu livro, tem esta passagem: "Cultivavam-se os pobrezinhos, regavam-se com bocadinhos de pão com conduto, com pequenas moedas e cultivava-se sobretudo a sua pobreza. Havia a comida dos pobres, as visitas dos pobres e a sexta-feira também era dia dos pobres."
A pobreza era tida como uma faceta essencial das sociedades, ou seja, não havia nada a fazer. De resto, o Evangelho tem muitas frases equívocas e que servem para muitas coisas, mas a frase dominante sobre os pobres é: "Quanto aos pobres, vós sempre os tereis convosco." É uma visão estática e duradoura da pobreza e eu sentia que viver numa sociedade civilizada implicaria não existir aquele grau de miséria. Fiquei muito revoltada, algo que coincidiu com a fase final da minha adolescência, que foi muito perturbadora. Aos 18 anos, saí da Igreja Católica. Fui confessar-me e declarei que não acreditava num dogma, que era o dogma da transubstanciação, uma coisa um bocado bizarra, que é a presença de Cristo na hóstia consagrada. O padre deve ter pensado: mas o que é que esta loira está a dizer? Eu sabia que iria dar um enorme desgosto à minha mãe – ela era alta dirigente da Acção Católica Portuguesa – se lhe dissesse que tinha saído da Igreja, de maneira que lhe disse: ó mãe, fui expulsa. E ela: de onde? E eu: foi o padre... Revoltava-me a visão da pobreza por parte da Igreja: os pobres estão lá e os ricos têm de os ajudar, têm de exercer a caridade. Isto, para mim, era um sinal de que a Igreja não tinha compaixão por aqueles que mais sofriam e dava boa consciência aos ricos, que tricotavam três casacos de bebé para dar no Natal e iam para casa. Eu não conseguia fazer isso.
"A caridosa burguesia tradicional cultivou, por isso, a pobreza dos outros com um carinho enternecedor. Nunca lhe passou pela cabeça que talvez fosse possível acabar com ela ou, pelo menos, tratar muito seriamente disso." Estas críticas estendem-se à actualidade?
Sim, sim. Eu não digo que as redes de solidariedade social, muitas delas com presença de pessoas católicas, não façam nada. Ajudam. Mas o substrato por trás é que os pobres estão em baixo e os ricos em cima. Portanto, estas redes ajudam, mas não estimulam as pessoas a sair da pobreza. A composição da sociedade portuguesa é de tal forma desigual e essa desigualdade é tão antiga que surge, muitas vezes, aos olhos das pessoas como uma coisa normal. Sim, há pobres e depois? E depois? E depois?! Não devia haver! Ou não devia haver tantos. E há a ideia de que não são iguais a nós, de que não têm as mesmas necessidades, de que se satisfazem com menos. É um selo sobre a desigualdade. A desigualdade está ali e fica assim, é uma espécie de "apartheid social", no fundo. "Nós somos ricos, precisamos destas coisas, eles são pobres, não precisam." Isto choca-me.
Mas essa visão ainda existe?
Existem restos. Até acho que há pessoas que julgam que a revolução francesa nunca aconteceu, pessoas que ainda vivem no século XVIII… Eu conheço vários estratos sociais porque a minha trajectória social é um bocado bizarra. O meu avô, do lado do meu pai, era um lavrador bastante rico. Do lado da minha mãe, não sei nada, porque não se sabe bem quem era o meu avô. O que é que ajudou na mobilidade social? Acho que foi a beleza das filhas e o facto de a minha mãe ter percebido que a Igreja Católica era um bom meio de ascensão social. Eu não estou a dizer que ela não era católica e que não acreditava. Mas ela não era nada beata, nunca rezámos o terço lá em casa. Íamos à missa ao domingo, ela conhecia os padres mais importantes, falava nas ocasiões grandes da igreja, era uma pessoa muito conhecida. Então, na minha adolescência, convivi com pessoas dessas famílias portuguesas mais antigas. Eu acho que são boas pessoas, mas não lhes passa pela cabeça que a desigualdade social é um crime. Há este abismo entre aqueles que vivem bem e aqueles que vivem mal. Por outro lado, muitos dos meus colegas universitários eram do MES (Movimento de Esquerda Socialista) e achavam que os pobres iriam desaparecer de um dia para o outro. Eu também achava, mas depois verifiquei que não era assim.
Diz que, na oratória revolucionária, nunca se falava de pobres.
Pois não, falava-se sempre de proletariado. E o proletariado era uma figura muito usada, mas a que não correspondia qualquer coisa de concreto. Eram pessoas que passavam fome? Eram pessoas que andavam mal vestidas? Eram pessoas que não tinham dinheiro para mandar os filhos às escolas? Não. O proletariado era essa figura mítica que iria surgir, graças à acção dos capitães de Abril que tinham derrubado o regime, e fazer uma revolução socialista. Ao princípio, acreditei que Portugal iria melhorar muito, eu era muito idealista. Isto foi em Abril de 1974. Em Junho, assisti ao caos completo na universidade onde dava aulas, no ISCTE: as estruturas hierárquicas foram-se abaixo, os professores catedráticos ficaram todos acobardados, com raras excepções. Os alunos queriam fazer o currículo, eles é que se classificavam, ninguém reprovava e eu pensei: o que é que eu estou aqui a fazer? Estou a roubar dinheiro ao Estado. O Estado paga-me para ensinar. Ensinem-se uns aos outros… muito boa tarde! Retomei a bolsa de estudo da Gulbenkian e voltei para Inglaterra. Portanto, o proletariado, para mim, deixou de ter sentido. Não é uma força motora que vai fazer uma revolução, não acredito que, de uma revolução, nasça uma sociedade mais pura, mais igual, mais extraordinariamente bela. Acredito que há reformas graduais e, nesse sentido, o termo que mais se aplica a mim é a social-democracia na versão, se quiserem, escandinava. Mas é preciso dizer que, apesar de tudo, e com todas a críticas que se possam fazer à sociedade portuguesa, não há comparação entre aquilo que se vive hoje e o que se vivia há 50 anos. Portugal melhorou bastante e as pessoas, às vezes, esquecem-se. A tendência é para glorificar o passado. O passado, para algumas pessoas, tornou-se um mito. Dantes é que era bom. Dantes, mas quando?! Só se for no século XII!
E de quem é a "culpa" da pobreza? Nos Estados Unidos, por exemplo, a "culpa" é dos próprios pobres que não vingaram na vida. Há um olhar cultural sobre o ser-se pobre.
Identifiquei quatro tradições e comecei a pensar: se eu fosse pobre, onde é que preferia nascer? Nos Estados ou em Portugal? Nos Estados Unidos, a pobreza é vista como culpa do próprio, ou seja, numa sociedade em que toda a gente pode subir até ao topo, aqueles que não melhoram a sua vida "têm culpa". Porque são preguiçosos ou bêbedos ou desleixados. O fracasso é atribuído à própria pessoa. Em Portugal, a ideia paternalista é a de que os pobres são um fruto natural da sociedade e que os ricos têm de ajudá-los. Isto porque a noção de ambição ou de subir na vida, até muito recentemente, era uma coisa muito negativa em Portugal. Quando cheguei a Oxford, em 1971, fui a um seminário intitulado "Achievement Syndrome", o síndrome de sucesso, digamos, e perguntei ao meu supervisor: o que é isso? E ele: mas você vem de onde?! E eu até lhe mostrei uma frase de Marcello Caetano, uma frase tremenda porque é muito clara, em que ele diz que não é possível as pessoas subirem na vida porque a inteligência leva várias gerações a formar-se. Portanto, o filho do sapateiro deve ser sapateiro, pelo menos durante cinco gerações. O que é curioso, dado que ele próprio, Marcello Caetano, é um caso típico de mobilidade social. Mas a mobilidade social ascendente era vista com muito maus olhos, as pessoas deviam estar sempre no lugar onde os pais estavam, ao passo que na América isso não sucedia. Na retórica, senão na prática, qualquer indivíduo podia e devia aspirar a mais.
Então preferia nascer pobre nos Estados Unidos?
Tudo contado, preferia ser pobre nos Estados Unidos. Não há nada pior na vida do que cortar as asas da ambição a uma criança. Não se pode dizer a uma criança: tu não vais além da terceira classe porque o teu pai é pobre, ficas onde estás.
Por outro lado, a resignação traz menos sofrimento.
Traz, mas eu não gosto de ser resignada. Tem toda a razão, muitos pobres eram resignados e aceitavam a doutrina de Cristo, a de que estavam ali para serem pobres e não havia nada a fazer. Pessoalmente, eu não quero ser resignada, não queria e não quererei sê-lo no futuro. Apesar de tudo, há facetas da cultura americana que são muito positivas.
Portugal também não tem tradição de filantropia, ao contrário dos países anglo-saxónicos, protestantes.
Isso tem que ver, em grande medida, precisamente com o protestantismo. Se os dignitários da Igreja Católica consideram que os pobres estão no lugar devido e que os ricos merecem ser ricos, então não há razão para que os ricos deixem a sua fortuna aos pobres. A deixarem fortuna, deixam-na à Igreja. E, depois, a Igreja distribui. Nos Estados Unidos, é diferente. Há a tradição dos grandes milionários filantropos. O exemplo típico é o de (Andrew) Carnegie, que deixou a maior parte da fortuna para criar universidades e bibliotecas. Em Inglaterra, existe uma tradição mais aristocrática. Durante todo o século XIX e parte do século XX, os aristocratas viviam nas casas de campo e sentiam-se responsáveis pelos pobres das suas herdades. Ao mesmo tempo, havia reformadores sociais, pessoas que acreditavam em causas e que influenciaram o Estado social inglês, como William Beveridge. Em Inglaterra, há esta tradição de, agnósticos ou ateus, se preocuparem com a questão da pobreza e de criarem um esquema para evitar que os pobres caiam na miséria mais absoluta. Portanto, temos a tradição católica dos países do Sul da Europa, a tradição aristocrática da Inglaterra, a meritocrática como a americana, e a tradição alemã, que conheço pior, que visava combater a pobreza através de seguros sociais. O Bismarck criou uma espécie de engrenagem, tipicamente alemã, com tudo organizadinho. Nós temos uma mistura entre isso e o modelo inglês do serviço nacional de saúde, ou seja, toda a gente, rico ou pobre, tem acesso gratuito à saúde. Que hoje em dia é difícil de sustentar, eu não sei se os ricos deviam ter acesso completamente gratuito…
Mas isso seria discriminar e ir contra o ideal fundador.
É um problema, sim, mas há coisas que me fazem impressão. Eu não sou propriamente rica. O meu pai arruinou-se – felizmente para mim, acho que a herança faz muito mal às pessoas – e desde os 19 anos que vivo só do que trabalho. Quando a minha mãe morreu, chegou um papel a dizer que me davam mil e tal euros para o enterro. Acho que isto não faz sentido. Os pobres podem precisar de mil e tal euros, mas eu não preciso dos mil e tal euros para enterrar a minha mãe. Há coisas que o Welfare State poderia gerir de outra maneira, não sei bem como. Eu tenho netos e, quando chegar a época deles, já não vão ter uma reforma. Eu tenho uma reforma por inteiro. É injusto para as novas gerações porque trabalham tanto como eu trabalhei.
Estudiosa da pobreza, critica o "conceito de pobreza alargado"…
Acho que pode prejudicar os mais miseráveis. Não ter carro ou não ter férias pagas, para mim, não é um indicador da pobreza. Eu não acredito que um em cada cinco portugueses seja pobre, não acredito que um em cada cinco portugueses passe fome. Pode ser que me engane, eu só queria que as pessoas que estudam estes temas pensassem bem se os critérios que estabeleceram são justos e se não estão a prejudicar os mais miseráveis.
Pobreza é passar fome? Quem não passa fome não é pobre?
É passar fome, é não ter dinheiro para mandar os filhos à escola, é não ter dinheiro para a electricidade. Se alguém me disser que é pobre porque não tem uma semana de férias pagas, eu já duvido de que isso seja pobreza.
Há muitas pessoas com emprego que são pobres.
Sim, com o salário mínimo ou nem isso. O salário mínimo é baixíssimo. E não faz sentido falar em baixa produtividade porque os mesmos portugueses, lá fora, são extraordinariamente produtivos. Os trabalhadores gostam, como toda a gente, de serem apreciados e bem remunerados. Os patrões tradicionais e os pequenos patrões são, muitas vezes, cruéis e não dão o devido valor aos trabalhadores. E também é uma questão de atitude. Por exemplo, em Portugal, não há a tradição de os administradores das empresas almoçarem no mesmo refeitório dos trabalhadores, como sucede em países como a Alemanha e a Inglaterra.
E isso é algo português?
É um bocado, faz parte de uma sociedade ainda arcaica, os trabalhadores cá em baixo e os patrões lá em cima. O facto de não almoçarem no mesmo sítio materializa essa diferença.
Olhar de cima para baixo. À distância. É este olhar desfasado que contribui para populismos e para a ascensão ao poder de pessoas como Donald Trump?
Em parte, sim. A ideia da América como um "melting pot", como um caldeirão em que todas as diferenças iriam desaparecer, não existe. Há uma política dirigida a grupos, que é nefasta. "Isto para os latinos, aquilo para os negros." Ao lado, existiam brancos pobres numa situação horrível que sentiram que não tinham ninguém que falasse por eles. Houve uma fissura muito grande entre os deserdados da terra e o Partido Democrata. O medo gera sempre coisas horríveis. Os americanos estão com medo, especialmente os mais pobres, do que é que pode estar por vir. E o Trump deu-lhes uma espécie de porta por onde eles julgam que podem entrar. Para mim, a eleição de Trump é o facto político mais deprimente deste ano. Há qualquer coisa nele que pode fazer ecoar uma voz brutal dos deserdados e das pessoas que odeiam toda a gente.
Vozes a ecoarem também na Europa, que está, de novo, a viver numa era dos extremos.
O centro está a ficar vazio. Vamos ver o que acontece em França… Em Inglaterra, o caso é um bocadinho diferente, no Brexit misturam-se outras coisas. Por um lado, existe o medo dos imigrantes, mas há uma parte das pessoas que votou Brexit que argumenta com a sobreposição das directivas de Bruxelas face às normas do Parlamento. Os ingleses sempre valorizaram o Parlamento. Há, portanto, uma ala que não é necessariamente populista, o que diz é que "quem manda em nós é o nosso Parlamento". Isso, eu compreendo e aceito. No livro que publiquei no ano passado, "A Minha Europa", eu já criticava o modelo napoleónico da União Europeia de impor coisas a todos os países. A Europa foi um sonho dourado do pós-guerra para acabar com as guerras e deveria ter sido construída de maneira que os vários cidadãos se sentissem identificados com os seus representantes, coisa que não acontece. Nem com os seus representantes nem com o exagero da intervenção. Uns senhores iluminados da Europa ditam as lâmpadas que posso usar em minha casa. Ora, em minha casa, quem manda sou eu, não são os burocratas de Bruxelas! Se os senhores querem mandar, têm de explicar muito bem porque é que estas lâmpadas são melhores. Mas, apesar de tudo, olhando para o mundo, nós temos a sorte de viver aqui, nesta região com uma cultura mais enraizada de liberdade e de democracia.
Não é uma eurocéptica, portanto.
Acho que não posso dar-me ao luxo de ser uma eurocéptica.
Por ser portuguesa?
Porque não pertenço a um país rico. Se pertencesse à Escandinávia, eu seria eurocéptica. Portugal, quer do ponto de vista financeiro, quer democrático, recebe bastante da Europa. Se chegasse aqui um D. Sebastião qualquer, a Europa funcionaria como travão porque nós, de tradição democrática, temos muito pouca, e de tradição liberal, não temos nenhuma. Todas as revoluções, desde 1820, partiram de golpes militares, o povo nunca participou. Apesar de tudo, estamos escorados por algumas normas culturais, e boas, que a Europa tem. Se eu vivesse num país que fosse suficientemente rico e não precisasse da Europa para ter a certeza de que não seria dirigido por um ditador, eu seria eurocéptica. Assim, estou muito caladinha.
Não posso dar-me ao luxo de ser uma eurocéptica. Porque não pertenço a um país rico. Se pertencesse à Escandinávia, seria eurocéptica.
Mas os valores da Europa parecem não estar a travar a xenofobia.
Algumas coisas perigosas podem surgir, sim, como o ódio ao estrangeiro. O aspecto mais negativo e previsível é a xenofobia – "eu e os meus irmãos deste país somos melhores do que os que estão ao lado". É horrível. O caso mais nítido talvez seja o da Hungria, na sua incapacidade de lidar com a onda de refugiados, algo que é muito difícil, eu não o nego.
É difícil lidar com os desafios das migrações e da globalização, algo que não vai parar…
Não podemos esquecer que a globalização tirou da miséria milhões e milhões de asiáticos. Se acreditarmos que a raça humana é una e que há uma humanidade no planeta, convém lembrarmo-nos que essa gente passou da miséria mais atroz para viver, agora, com o mínimo de bem-estar. Isso não quer dizer que os governantes dos países europeus possam fazer todos e quaisquer tratados de comércio. As esquerdas têm de pensar que a globalização veio para ficar e que existem formas de conseguir que os tratados não destruam repentinamente indústrias inteiras nos países da Europa e nos Estados Unidos e evitar uma multidão de desempregados.
E, em Portugal, adivinha movimentos ou partidos mais extremados?
Eu até imaginava que poderiam surgir com mais força. De facto, o salazarismo é um fenómeno estranho porque não teve discípulos, nem ninguém se reclama daquele regime e não surge aqui nenhum saudosismo em relação ao que ele dizia e fazia.
Não?
Esse saudosismo pode existir em retórica, mas não na organização. Em relação a partidos nacionalistas, por razões familiares, conheço bem o Partido Nacional Renovador [José Pinto Coelho, presidente do partido, é sobrinho de Maria Filomena Mónica]. Mas, como o partido é muito pequeno, não me assusta.
Nós, portugueses, mantemo-nos numa temperatura média, disse numa entrevista.
Tem que ver também com o nosso medo de mudança. Nos países pobres e, neste caso, num país muito antigo como Portugal, os cidadãos têm medo de que aquilo que vier possa mudar o país para pior, então, adoptam a atitude do "mais vale estarmos quietos, não nos metermos em aventuras, deixarmos as coisas em lume brando e ver como correm". Há aqui um aspecto de resignação que me custa, acho que os portugueses estão a aceitar viver nesta crise porque, apesar de tudo, não é assim tão horrível como isso, e então preferem não embarcar em aventuras que podem acabar mal.
O abalo pode vir do descontentamento em relação à corrupção?
Os portugueses olham para os políticos com desconfiança, sabem dos seus casos de corrupção, mas eles próprios também a praticam. Ele roubou? Eu também roubo. O político rouba mais porque pode. Não há a indignação que eu esperaria que houvesse perante os dispêndios do aparelho de Estado, com carros e coisas ostentatórias. Vivemos num país onde a corrupção está enraizada. Isso é mau e deriva, de alguma forma, da religião católica. Do facto de nos podermos confessar e dizer "roubei um milhão de euros mas estou arrependido" e o padre responder: "Está bem, vai para casa, reza três ave-marias." Nos países protestantes, como não há confessionário, uma pessoa que rouba e acredita em Deus sabe que Deus tem conhecimento e, portanto, há um ónus sobre a própria pessoa para não cometer crimes. Para os dinamarqueses, por exemplo, um político corrupto é imediatamente crucificado. O reverso da medalha é que os cidadãos podem ser censórios demais. Mas eu preferia viver numa sociedade assim do que numa sociedade corrupta como a portuguesa.
Os políticos vivem uma crise de credibilidade e nunca a tiveram junto dos mais ricos. É assim? "Para os ricos, os políticos estão abaixo deles, são marionetas ao serviço."
É como eles pensam, veja o caso do Ricardo Salgado. Achar-se-ia no topo do mundo. Mas, aos políticos, não vale a pena corrompê-los, basta encontrá-los. Basta uma palavrinha, não é preciso dinheiro – o mecanismo da (alegada) corrupção do engenheiro Sócrates foi algo desviante. E há a presunção de que quem está a falar com os políticos está acima deles. O estrato social dos políticos também importa muito. Em Inglaterra, há parlamentares que descendem da grande aristocracia, têm uma grande confiança social em si, sentem-se suficientemente seguros na sua condição social para não serem tão influenciados. Em Portugal, há políticos que vêm de muito baixo, e os "self-made men", às vezes, são muito perigosos. Eu respeito a meritocracia, mas aqui não se trata de meritocracia, trata-se de pessoas que sobem pelas vias do partido, homens habituados, desde pequeninos, a dizer que sim e sim ao secretário-geral do partido.
A "geringonça" tem-se aguentado mais do que eu estava à espera, está a atravessar uma fase de lua-de-mel morna.
Não se vê a aristocracia na política em Portugal.
Isso radica em coisas muito longínquas. No princípio do século XIX, a velha aristocracia portuguesa tomou partido pelo D. Miguel, que foi derrotado numa guerra civil em que morreu muita gente. E os aristocratas ou foram mortos ou foram para o exílio, o caso mais notório é a Casa de Cadaval. Ou, então, os que ficaram do lado liberal não tiveram descendência que chegasse até nós ou nunca se interessaram muito por política porque achavam que era algo que estava abaixo das suas apetências e dignidade. Mesmo com Salazar, a maior parte dos ministros, a começar no próprio Salazar, era de origens modestas. A política nunca atraiu muito a nobreza de sangue.
Em Portugal, como vê a "geringonça"?
Vou dizer uma banalidade, [a "geringonça"] tem-se aguentado mais do que eu estava à espera, está a atravessar uma fase de lua-de-mel morna. Se está a fazer as reformas estruturais que o país precisa, disso, desconfio. Não estou de acordo com várias coisas, sobretudo no domínio da educação, mas é melhor esta situação do que uma instabilidade total e, aqui, Marcelo Rebelo de Sousa tem desempenhado um papel importante, no sentido de apaziguar diferenças. Tudo tem de ser feito com pinças porque, de facto, o país é muito frágil e há muita pobreza. É como quando uma pessoa está doente, não pode dar grandes saltos, tem medo de cair, e o Presidente da República tem alertado para esse facto, e para a necessidade de mudar algumas coisas também. Só esperemos que os mais pobres não fiquem ainda mais pobres.