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Mara Castilho: Lisboa é pequena, mas grande o suficiente

Brasileira, portuguesa, inglesa, não necessariamente por esta ordem. Encenadora, performer e artista plástica, Mara Castilho apresenta, na Culturgest, a sua “Cidade Perdida 0.11”.

Bruno Simão
08 de Julho de 2016 às 15:03
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Mara Castilho é encenadora. É performer. Também é artista plástica. Usa fotografia, faz filmes e gosta de explorar como é que se pode deixar lastro num espaço. O trabalho dela não é fácil de definir, o que parece incomodar mais os outros do que ela própria. Também não é fácil defini-la a ela: brasileira, portuguesa, inglesa, não necessariamente por esta ordem. Hoje e amanhã no Grande Auditório da Culturgest, em Lisboa, apresenta Cidade Perdida 0.11, um espectáculo que estreou em Londres há mais de 10 anos, num momento em que queria perceber como abordar de forma bela sentimentos que nos perseguem, por exemplo, a saudade. Nele, aparecem muitas imagens com fundo de tijolo londrino, mas podia ser qualquer cidade. Podia ser Lisboa, onde tantas vezes, sem querermos, os passos se tornam circulares e retornamos aos mesmos sentimentos.


1. A plateia sempre aqui e o actor lá, no palco. Essa distância incomodava-me. Eu queria explorar a ideia de espaço de outra forma. Depois de vários anos a fazer teatro e dança, e em que montei uma companhia em Londres, tive necessidade de sair do palco. E comecei a fazer performances e instalações. E a trabalhar em galerias e museus, onde o público está mais perto e navega pela obra.
Depois, gosto de juntar vários meios: teatro, dança, vídeo, fotografia. As pessoas têm dificuldade em colocar-me num grupo: porque não sou do teatro, não sou da dança, mas também não sou só das artes plásticas. Para outros, isso pode ser estranho mas, para mim, faz tudo parte da mesma obra.

2. A minha mãe era pintora, o meu pai era escultor, a minha avó foi actriz. Acho que a minha avó foi a pessoa que mais me influenciou e se faço o que faço é por causa dela. Era ela que me levava a concertos de música clássica. Foi ela que me levou a ir ver uma instalação do [artista americano de videoarte] Bill Viola quando eu tinha uns 13 anos; a ouvir o John Cage quando tinha uns 14.
Eu morava no Brasil e vinha sempre passar as férias a Portugal. Quando chegava, ela já tinha a programação cultural completa para nós: concertos, exposições, tudo. Íamos sair, íamos fotografar, íamos pintar. Ela fazia teatro em casa. Talvez seja por isso que para mim a arte engloba tantas áreas diferentes.
Até morrer, ela levava-me a lugares e mostrava-me coisas, das mais clássicas às mais vanguardistas. Tinha sempre a cabeça muito mais à frente e era muito mais jovem do que vários jovens que conheço. Estava sempre à busca do novo.

3. Nasci em Inglaterra. A minha mãe era exilada política. Com o 25 de Abril voltámos para Portugal, mas depois a minha mãe foi para os Estados Unidos e conheceu o meu padrasto. O meu padrasto, que é brasileiro, também era exilado político e, quando houve a amnistia, fomos para o Brasil.
Eu tinha sete anos quando fui para o Rio e saí de lá com 19, então a parte mais importante do meu crescimento foi lá. Sinto que tenho um coração brasileiro, mas não tenho uma alma brasileira. Acho que tenho uma alma lusa. Não me identifico com o calor, com o samba, com aquela alegria. Eu andava sempre de preto naquele calor infernal. Era a única pessoa que usava guarda-sol. Eu morava em Ipanema, e em Ipanema e Copacabana não se via ninguém com guarda-sol. Os meus amigos sabiam: lá está a Mara, vestida de preto, com um guarda-sol.
Quando fui para Londres achei que não ia voltar e, de facto, não voltei.

4. Fiquei em Londres 15 anos. Continuo a ir muito a Londres, porque o meu filho é inglês e o pai dele é inglês. Andamos sempre de um lado para o outro.
Gosto de ir lá carregar baterias, mas gosto de viver em Lisboa. Lisboa é pequena, mas grande o suficiente. Acho que é bom estar aqui se conseguirmos ir estando de olho fora, ir saindo para fazer coisas. Mas isso é verdade em qualquer parte do mundo. Porque se uma pessoa também estiver sempre em Londres, também se fecha na cidade. Londres é uma cidade onde se está sempre a consumir e quando se está sempre a consumir não se consegue produzir. Há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo. Em Londres, tem-se a sensação de que se está sempre a perder alguma coisa. Por isso, há que sair também, senão a cidade engole-nos.
Eu gostei muito de viver lá enquanto era estudante, à medida que me estava a desenvolver enquanto artista, mas depois comecei a sentir uma pressão enorme e depois, quando tive um filho, senti que já não era o lugar certo.
Votei no referendo britânico. Como sou inglesa posso votar. Votei para ficarmos na União Europeia. Agora, milhões de pessoas querem um novo referendo. Acho que agora ficaram assustadas, agora é que, como se diz no Brasil, caiu a ficha. Acho que a maioria das pessoas que queria ficar na UE são jovens e os jovens britânicos estão furiosos. Os jovens têm outra cabeça e vêem o mundo de forma diferente.

5. Estive agora em Detroit, porque andava com um projecto sobre Detroit um bocado engasgado. Estive lá a filmar e a fotografar os espaços vazios. Sou obcecada por espaços vazios: espaços sem ninguém; onde devia estar um corpo, está a ausência do corpo.
Detroit entrou em decadência, faliu tudo, e aquilo virou uma cidade-fantasma. As pessoas abandonaram as casas deixando tudo dentro. Entras em casas e tens tudo lá dentro: televisão, roupinhas de bonequinhas, quadros, máquina de café... Umas casas foram incendiadas, outras foram vandalizadas. Com tudo lá dentro. É uma sensação muito esquisita. E é impressionante. Parece um cenário onde houve uma guerra nuclear e as pessoas desapareceram.

6. Eu vou sempre criando um bocadinho, estou sempre a fotografar e a tirar notas. Mas depois preciso de ter "deadlines". Aí, sabendo para onde, para que espaço, e para quem, para que público, eu começo a criar. Mas preciso de ter o "deadline", senão murcho. É então que vou às minhas notas, às minhas imagens, recolho o que é interessante e começo a criar.
A não ser que alguém me encomende um trabalho com um tema específico, os espectáculos vêm sempre de ideias que vou recolhendo ao longo do tempo - às vezes pode ser ao longo do ano, outras vezes ao longo de uma década. Vou fazendo livrinhos e livrinhos e há coisas que só uso 10 anos depois. Cada vez que tiro uma ideia de um desses livrinhos, faço um quadrado e uma cruz: ideia já usada. As minhas criações - como esta hoje na Culturgest - são sempre um "patchwork", uma manta de retalhos, uma colagem de várias coisas, mas que depois chegam a algum lugar.
No caso deste espectáculo, Cidade Perdida 0.11, é uma colagem também de várias coisas que se estavam a passar naquele momento na minha vida. É um espectáculo que criei há mais de uma década. Com ele, queria tentar abordar temas que me incomodavam - a morte, o sofrimento, a saudade -, mas de uma forma bela.


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