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Luís Simões: A música é um negócio cheio de egos

Multi-instrumentista, produtor, compositor, Luís Simões é o Zymon dos Blasted Mechanism e criou os Saturnia, uma “one-man band” com 20 anos que lançou o seu sexto álbum, “The Real High”.

Bruno Simão
02 de Setembro de 2016 às 14:00
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Gosta de ter a idade que tem, quase 44, continua a divertir-se, diz. Acha que as pessoas assumem pouco aquilo que são. Ele, Luís Simões, gosta de ser quem é, e ele é muita coisa. É multi-instrumentista, produtor, compositor. É um tipo de cabelo comprido, patilhas, que despertava olhares ainda mais curiosos no Portugal dos anos 80. Foi em Linda-a-Velha que passou a adolescência e a entrada da idade adulta. Aprendeu guitarra clássica, trocou-a pela eléctrica, meteu-se no rock, tocou heavy metal numa banda mitológica de nome Shrine, é o Zymon dos Blasted Mechanism, criou os Saturnia, uma "one-man band" com 20 anos que lançou agora o seu sexto álbum, "The Real High", numa associação com a editora alemã Elektrohasch. É o seu disco mais despido.


"The Real High" é o álbum mais despido que eu já fiz, é um disco brutalmente honesto. A música psicadélica tende aos barroquismos e às complexidades e camadas de sons e de efeitos e enfeites e, durante muito tempo, eu segui esse caminho. Este disco é mais nu, tem uma utilização do silêncio que os outros não têm. O silêncio ouve-se mais. Não há nada escondido. Não é que nos outros discos eu me tivesse escondido atrás da produção, de sintetizadores ou de camadas, mas havia muita coisa imperceptível para um ouvinte menos melómano. Ainda que não quisessem desagradar, os outros álbuns foram feitos com a ideia de que quem os ouve tem 50 minutos para dar aos Saturnia e se não tiver é porque não está assim tão interessado em ouvir, e então os Saturnia também não estão assim tão interessados nessa pessoa. É uma atitude facilmente interpretável como elitista. Eu não sou nada elitista, mas o produto Saturnia, falando num contexto de "business", nunca foi feito a pensar em massificação. O espírito Saturnia é a escultura feita em casa, para três, quatro, cinco mil pessoas. É um produto "homemade", mas não acho que tenha de ser pouco polido por isso. A minha tendência é mais para o estilizado ou sofisticado, para o complexo.

A minha "persona" musical tem o lado do músico mas também tem o lado do melómano. Sou fã de música, sou coleccionador de discos desde muito miúdo, ouço de tudo. Não gosto apenas de música psicadélica. Sou um "classical music buffer", sou um jazzista, gosto de música electrónica, mas também tenho um lado pop, gosto de uma boa canção. Sou uma mistura disso. Nunca tive medo de ser politicamente incorrecto e nunca tive medo de ser considerado foleiro. Por exemplo, o José Cid é hoje um "household name" novamente, e ainda bem, ele é um super-artista. Quando os Saturnia nasceram, eu comecei a olhar mais para alguns discos portugueses antigos e procurei os singles obscuros do Cid, não só os álbuns de rock progressivo mas também os do Cid pop, que eram gozados pela malta amiga. Hoje, assume-se o culto do José Cid. Ele é um exemplo, existem outros. Eu ouvia coisas que eram extremamente "uncool" na altura e que agora estão super na moda em termos de rock retro.
Dito isto sobre Luís Simões, o cromo, sendo originalmente suburbano e tendo nascido no início dos anos 70, a adolescência aconteceu nos anos 80 em Linda-a-Velha. O meu pai ouvia muita música, mais da área do jazz, dos blues, gospel, por aí. Mas a minha mãe era uma pessoa mais musical, chegou a cantar num coro e cantava bem. Neste disco, a voz dela aparece, embora postumamente. Eu tinha muitas gravações da minha mãe e, no início do ano, ganhei coragem e, naquela do "não posso adiar mais isto", fui ouvir horas e horas dessas gravações antigas e encontrei uma coisa dela a cantarolar que encaixava na escala e no tom do último tema. Foi uma experiência muito intensa, para ambas as polaridades, para as mais luminosas e para as mais escuras.

O meu início como músico activo está no rock, embora a minha aprendizagem tenha sido na guitarra clássica. Quando comprei a primeira guitarra eléctrica, acabou-se a clássica. Fui, basicamente, um músico de rock. Toquei heavy metal numa banda mitológica aí da cena portuguesa, chamada Shrine, que ainda hoje tem algum culto. Mais tarde, quis afastar-me dos dogmas da música rock, dos dogmas de composição, de técnicas, de formas de trabalho, dos dogmas que surgem quando se está num grupo, fechado num sítio até tarde a fazer barulho e mais barulho, embora haja barulho fantástico, eu asseguro! Fugi um pouco do trabalho de grupo pelos vícios que tendem a desenvolver-se. Há uma altura em que isso é óptimo, mas depois deixa de o ser e foi assim que decidi trabalhar sozinho. Os discos Saturnia continuam a ser feitos basicamente por mim, com uma ou outra ajuda de um convidado ou de um amigo.
Os álbuns Saturnia nunca tiveram uma distribuição local. A dada altura, perdi a paciência para andar sempre nesta cruzada portuguesa. Voltei a fazer umas abordagens há pouco tempo, bati a algumas portas, sem sucesso. Há um lado do negócio português que sempre me fez confusão, e que continua a fazer, as pessoas têm demasiado medo de arriscar, talvez seja isso.
Sempre fui movido pelo meu amor à música e essa é, provavelmente, a razão pela qual ainda ando nisto. É difícil, é irregular, é um negócio cheio de egos, não só nos artistas mas também nas outras pessoas do "business", há mais estrelas do que as estrelas no mundo da música, eu fico perplexo. Eu toquei nos Shrine, depois comecei os Saturnia e estive um mês nos Blasted Mechanism. Saí e reingressei em 2003, ano em que a banda pega fogo. Em 2005, tem logo um disco de ouro, um globo de ouro, o cachê sobe por aí acima e assim esteve durante uns tempos. Até à troika. A banda continua a ser um nome gigante, ainda que, em termos de prática financeira, isso não seja demasiado explícito. Estamos a falar de uma banda alternativa com umas máscaras estranhas.
As pessoas falam muito das bandas e do artista mas nunca ninguém toca no aspecto do dinheiro, que é encarado como um assunto inferior. Há uma resistência em falar do lado financeiro, nada romântico e muito sujo. Eu não o acho nada sujo. Como é que manténs um bando de gajos, com força e energia, se eles não tiverem uma existência que lhes permita isso? De uma forma geral, ser músico em Portugal é estar à rasca. Eu não estou à rasca, mas eu faço parte de um grupo de pessoas que estão nisto há muito tempo, que trabalharam duríssimo, que têm qualidades e que também tiveram sorte. O caso dos Blasted é o mais evidente porque, através da banda, eu toco para milhares de pessoas, que conhecem o mascarado que sou eu, e que é o Zymon, e continuo a ganhar dinheiro mesmo na crise. A banda tem um nome já cravado na história da música. Por outro lado, tenho também os Saturnia, uma coisa que gera algum dinheiro ou, pelo menos, não perde. Saturnia tem estado sempre no "break even". Mas, claro, o amor pela música continua a ser aquilo que me move, continua a ser aquilo que me mantém o espírito.

Quando olho para os Saturnia, apesar de na prática ser uma banda meio estrangeira, eu vejo uma espécie de beleza melancólica e "cool", que é uma coisa profundamente portuguesa. E adoro isso, eu adoro Portugal. Odeio as coisas más do país, como o facto de ser desorganizadíssimo e de ter vindo parar a esta situação económica embaraçosa, mas Portugal, como entidade, não tem culpa. E o português tem uma coisa única: é o único povo latino que não é mediterrânico, é atlântico, a nossa geografia não é a árida como é a dos italianos ou dos gregos. Portugal é verde. Fruto disso, somos um povo latino que se sabe virar para o prazer, sim, mas somos o único povo latino verdadeiramente introspectivo. E eu gosto desse lado. Sou mesmo português. 
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