Notícia
Luís Afonso: Portugal está cheio de dádivas para fazer humor
O “cartoonista” Luís Afonso nasceu em Aljustrel e hoje vive em Serpa. É lá que nascem os seus bonecos. Aqueles que contam histórias no Público, n’A Bola e no Negócios.
O adepto de futebol era, para ti, a pessoa mais "tresloucada, insana, demente e histérica", até conheceres os investidores, disseste, numa entrevista ao Negócios, no Verão de 2012.
E é verdade! Eu trabalho para A Bola desde o início de 90, são muitos anos a lidar com adeptos de futebol, conheço esse lado insano, mas os tipos acabam por ser as pessoas mais leais que existem, é uma coisa levada da breca, há ali uma paixão sem pedir nada em troca. Vá lá, talvez peçam um titulozinho de vez em quando… Os investidores são mais frios na altura em que investem, mas nos momentos subsequentes reagem de forma totalmente tresloucada, acordam nervosos. Ao fim de uns anos disto, uma pessoa até fica imune aos nervos dos mercados.
O mundo da economia era-te estranho até começares, em 2003, com o "cartoon" do Negócios, o SA. Na altura, nem sabias o que era um CEO. Foi assim?
Foi. Agora já sei isso tudo. Mas nessa altura, o Sérgio Figueiredo (então director do Negócios) meteu na cabeça que eu tinha de fazer uns bonecos para o jornal e eu disse-lhe: "Eh pá, não, tenho muita coisa para fazer e estou um bocado fora do mundo dos negócios." Na altura, ninguém ligava porra nenhuma à economia, ninguém sabia quem era o presidente de um banco ou o director de uma empresa. Sabia-se quem era o Belmiro de Azevedo, o Amorim e pouco mais. Ninguém ligava aos empresários nem aos banqueiros. Hoje, as principais notícias são sobre economia. Lembro-me de um tempo em que havia a "silly season". Hoje fala-se dela, mas não existe. E isto deve-se à crise financeira, que começou num mês de Julho. Desde então, nunca mais tivemos um Verão de sossego.
Compras jornais todos os dias, estás sempre ligado à internet. A actualidade não te cansa? Até porque a realidade que se vê através dos meios de comunicação pode ser muito estreita…
E repetitiva. E circular. As coisas repetem-se de tal forma que já dei por mim a fazer um "cartoon" e a pensar que já tinha visto aquilo em qualquer lado. Afinal, tinha sido eu próprio a fazer um boneco muito semelhante, uns anos antes. Claro, se começar a pensar muito sobre se a actualidade me cansa ou não cansa, posso saturar-me dela, e isso seria lixado. Mas, repara, eu não uso redes sociais, não vejo televisão…
Sim, a última série que viste, do princípio ao fim, foi o "Dallas"…
Estiveste a ver o programa do Alvim… Mas, sim, deve ter sido isso. Não vejo televisão, não sei o que está a dar. No início, quando falavam no "Game of Thrones", eu pensava que era só um jogo de computador. Também sei que havia uma série chamada "Sete Palmos de Terra" e outra que era o CSI, não é? Assumo que perco coisas. Vivo feliz com isso. É verdade que às vezes a notícia surge na televisão e eu já só apanho as réplicas. Mas seria humanamente impossível, além de ler jornais e estar atento à net, acompanhar também a televisão e usar as redes sociais. Só de pensar nisso, já fico cansado. Não tenho tempo. Ao jantar, eu paro com tudo. Mais luz nos olhos é que não! Leio livros. É assim que consigo viver.
Não acompanhas as séries, mas vês filmes todos os dias… em cima da uma bicicleta elíptica.
Escuta, na minha elíptica, eu vou sempre ao mesmo ritmo, só mexo os braços e as pernas, a cabeça fica quieta. Por isso, dá para ver os meus filmes. Faço isso há uns 15 anos e agora estou completamente "up to date" em termos de cinema. São 45 minutos todos os dias de manhã. Sábados, domingos e feriados! Estou a ver um filme fantástico, "A Onda", do Dennis Gansel. Sou sócio da Cineteka, tem um catálogo muito bom. Já aconteceu o meu filho do meio chegar ao pé de mim com uma sugestão de um filme e eu responder: "Amanhã, quando me puser em cima da máquina, vou logo vê-lo." E ele: "Pai, já reparaste que podes ver filmes sem ser em cima da máquina? Não precisas de estar a correr…" Acho que é um gesto reflexo. Há malta que já não consegue ver um filme sem ter um balde de pipocas à frente, o meu balde é aquele. E olha que tenho um corpo melhor do que tinha aos 30 anos – eu era um badocha.
Portugal continua a ser o melhor país para fazer humor?
Continua. Porque isto não funciona. Portugal não funciona. O que é que eu posso pedir mais de um país? Olha para esta solução governativa. Olha a riqueza disto. Veja-se a forma como o PSD e o CDS ficaram na oposição, não se conformaram e estão irritados, a fazer birra. Uns adaptaram-se facilmente ao poder, os outros não se adaptaram à oposição. E o PS é uma dádiva. E, quando está em ponto de rebuçado, o PSD também é uma maravilha. Zangam-se todos uns com os outros e eu acho isso adorável. Depois, em termos de economia, temos este cruzamento directo e evidente entre o mundo dos negócios e mundo da política. Noutros países, saberão fazê-lo de uma forma mais disfarçada. E, no desporto, já viram a dádiva que é termos um gajo como o Jorge Jesus? É uma coisa única! Até tremo de pensar que o Jesus possa deixar de ser treinador ou uma coisa qualquer. E não é só o Jesus. Mas o Jesus é o topo! O resto também é bom. Temos de nos lembrar que o presidente do Benfica invadiu um estúdio de televisão, interrompeu um programa, à Bruno de Carvalho. O Luís Filipe Vieira já teve o seu tempo de Bruno de Carvalho. Agora parece um estadista. Este país está cheio de dádivas.
"Acho que está bom demais, não precisava de ser um país tão bom a esse nível", dizias numa entrevista.
Pois, como cidadão, eu gostava que as coisas funcionassem bem em Portugal. Tenho três filhos. Um tem 25, outro 23 e o outro tem 22 anos. Mas não acredito que o país vá melhorar. Isto não tem emenda, não tem solução e vai mesmo acabar mal, é uma previsão que nem corre o risco de falhar. Se não acabar mal neste século, acaba no outro, se não falhar por razões políticas, falha por razões económicas ou ambientais. Temos de nos habituar.
Com sentido de humor?
Com sentido de humor porque é a forma que temos de nos defender. Mas, como não sabemos quando é que tudo vai falhar, a gente tenta, naquilo que está ao alcance do nosso nariz, e o meu nariz por acaso alcança muito, fazer algo para que alguma coisa melhore no curto prazo. A médio prazo, morremos todos e o longo prazo não existe. Eu sou uma pessoa que não se leva muito a sério, não tenho soluções para as coisas, e sinto que o meu papel também não é esse. Se o meu papel fosse o de ter soluções para as coisas, eu estaria preocupado mas, porra, não é! O que faço é pegar nas contradições e gozar com elas. Não tenho certezas nenhumas. Sabes do que é que eu gosto mais quando entro numa discussão? É de perder essa discussão. Porque aprendo. E isso acontece muitas vezes. Estou desejando de perder discussões. Gosto de ouvir. Não parto para uma coisa já endrominado. E quando sinto alguma coisa mais pessoal em relação a alguém que estou a retratar, paro de o fazer. Aconteceu-me muitas vezes quando o Sócrates era primeiro-ministro, eu embirrava com ele. Às tantas, pensava: estou a fazer isto por embirrar com o Sócrates ou por ser uma coisa objectiva? E chegava à conclusão que era por embirrar.
Pergunta clássica. Deve haver limites ao humor?
Em abstracto, o humor não deve ter limites mas, na prática, todos os humoristas se limitam. O Tignous, um dos "cartoonistas" que morreu no massacre do Charlie Hebdo, dizia que só ia até onde se sentia confortável. Também eu só vou até onde me sinto confortável.
Falas em objectividade. Achas que o teu trabalho deve ser objectivo?
O fim do meu trabalho não tem de ser objectivo, mas o princípio sim. Tenho de partir de factos verdadeiros e não posso deixar-me enrolar por notícias que não são verdadeiras.
Até tens carteira de jornalista.
Sim, considero-me jornalista numa primeira fase, que é em tudo semelhante ao trabalho de um jornalista, eu confronto os vários lados de uma mesma coisa. Depois, tenho o lado de opinião.
Trabalhas no jornal A Bola, no Negócios, no Público. Tens o monopólio dos jornais…
Não tenho nada o monopólio dos jornais!
Foi para picar. É que não há muitos "cartoonistas" na imprensa portuguesa.
O problema está no facto de os nossos jornais terem, na sua maioria, apenas um "cartoonista". E falo daqueles que têm "cartoons". Foi sempre assim. Repara também que, para fazermos este tipo de trabalho, não podemos ser muito novos, temos de ter conhecimentos suficientes e capacidade para relacionar factos. Eu não era assim tão novo quando comecei, tinha quase 30 anos, e só pude meter-me nestas coisas porque era professor de Geografia, o que me permitia ter uma forma de subsistência e, na altura certa, comecei a fazer "cartoons" diários para o Público.
Mas sempre foste muito preguiçoso a desenhar, ainda hoje o és. Reconheceste-o num programa do Rui Unas. Aliás, nos teus desenhos pueris de criança, em vez de pintares uma árvore de verde, escrevias a palavra "verde".
E depois tinha negativa. Mas aquilo era uma mariquice. Sabes aquele clique do photoshop que faz isso? Eu sonhava com aquele clique. Lembro-me de fazer "cartoons" de página inteira para A Bola, tinham um fundo verde, eu desenhava os bonequinhos a lápis, depois cobria com uma máscara líquida, deixava a máscara secar (ainda ali está o secador de cabelo desses tempos) e, depois de estar tudo sequinho, vinha um pincel grosso, depois descolava a máscara líquida… porra! Era um processo que demorava umas duas horas, se tudo corresse bem. O que é que isto significava? Significava que eu tinha uma ideia, demorava horas a concretizá-la, e depois surgia uma melhor… e eu ficava muito lixado!
Não gostavas de pintar, mas em criança já fazias bandas desenhadas que depois vendias.
Sim, eram bandas desenhadas sobre a vizinhança, aquilo era uma espécie de jornal da rua. Quando andava na secundária, já tinha aquelas canetas Rotring e era com elas que desenhava em casa, mas na escola eu só usava tira-linhas, não levava as minhas canetas. Aliás, tinha dois estojos, um com as minhas Rotring, e outro que estava todo roto, que era aquele que levava para as aulas. Tudo o que fosse pior era o que levava para a escola. E nunca consegui fazer uma oval, nunca acertava. Com o compasso e o tira-linhas, eu era um desastre. O futuro veio dar-me razão. Há programas de arquitectura que fazem essas coisas.
Quais são as tuas referências de banda desenhada?
No início, eram o Astérix, o Lucky Luke, o Tim Tim… Era aquilo que eu queria fazer, eu só começo com os "cartoons" depois de fazer uma banda desenhada num suplemento de juventude. Gostaram dos meus bonecos e perguntaram-me se eu não queria fazer "cartoons". Até aí, nunca tal me tinha passado pela cabeça.
Em termos de humor, sei que és fã do Woody Allen.
Sempre fui fã do Woody Allen, ainda continuo a achar que os maus filmes do Woody Allen são filmes excelentes. E admiro a capacidade que ele tem de gozar com ele próprio e connosco. Eu gosto de fazer isso, de não me levar demasiado a sério.
As pessoas levam-se demasiado a sério?
Acho que as pessoas se levam demasiado a sério, sim, as pessoas ficam embevecidas a ouvirem-se a elas próprias, é uma coisa comovente. Não é só o Jesus, o Jesus, coitado, é um alvo muito identificável. Vivemos na sociedade do eu, eu e eu. Se houvesse telemóveis com câmara fotográfica no tempo do Paleolítico, não havia gravuras rupestres. Há uma fixação na auto-representação, a malta está vidrada nela própria. É uma coisa levada da breca.
[A entrevista é interrompida pela hora de almoço. Pelas ruas de Serpa, a caminho do restaurante O Alentejano, Luís Afonso ora levanta o braço, ora diz boa tarde, ora levanta de novo o braço e sai mais um "boa tarde". Encontra a "sócia", como chama à sua mulher Margarida. "Ela casou comigo por motivos científicos, nem foi por amor, ela é de Antropologia. Conhecemo-nos em Aljustrel, a Margarida depois ficou colocada em Serpa e eu vim atrás, dar aulas de Geografia. E fui geógrafo". Uma pequena rotunda com três carros e cinco pessoas obriga a uma paragem. "Ora, está aqui um engarrafamento, que ‘stress’ do caraças. Temos de mudar de terra, Margarida, isto está a ficar insuportável!", brinca Luís Afonso. Chegamos ao Alentejano anfitrião. "Este é o Arlindo, o ‘boss’ do restaurante". Sai carne de porco preto, um bocadinho de sal, meia dose, um ensopado de borrego. "O senhor Luís quer um prato muito especial, não é? Bacalhau à Brás." (risos). "Mas eu gosto deste bacalhau à Brás! Considerem-se abençoados".]
Estavas a dizer que tinhas sido geógrafo.
Trabalhei na Câmara de Serpa como geógrafo e o trabalho estendeu-se para cinco municípios da margem esquerda do Guadiana. Depois dei o salto para Terras Dentro, uma associação de desenvolvimento em Alcáçovas, aí eu contacto com o tecido empresarial e económico da região. A associação era liderada pelo Camilo Mortágua e trabalhar com ele foi uma coisa fascinante… Fazíamos o acompanhamento de propostas para turismo rural, salsicharias, queijarias. Eu era o responsável pela caracterização geográfica da zona de intervenção.
Porque é que escolheste Geografia?
Essa história já foi contada. É uma coisa tão estúpida... Eu nunca gostei muito de estudar, não ligava, andava na área científica no 12.º ano e uma amiga disse-me que a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa era muito fixe, que havia muitas RGA e que o Zeca Afonso e o José Mário Branco iam lá cantar. Eu quero ir para lá!, pensei. Só que estava em ciências… Como é que ia dizer ao meu pai que queria ir para letras? Mas havia um curso de ciências na faculdade, que era Geografia. Foi assim. Até então, eu tinha umas notas que não davam para nada e, para entrar na universidade, tive mesmo de estudar, acabei com a segunda melhor nota de entrada do curso. Quando entro no departamento de geografia, perguntaram-me o porquê da escolha de Geografia. E eu disse a verdade. Olharam para mim e parecia que estavam a olhar para um "alien".
Depois da Geografia, começaste a fazer "cartoons" num suplemento, contavas. E a seguir?
Depois comecei a fazer bonecos em revistas. O desporto apareceu com um jornal que era o Ases, não chegou a sair, seria um trissemanário desportivo e o director era o professor Moniz Pereira. Eu teria uns 19 anos, não me lembro porque é que o jornal não arrancou. E, como tinha muitos bonequinhos feitos para desporto, levei-os ao jornal A Bola e eles gostaram.
O futebol não era propriamente a tua paixão. Preferias as motas e os carros. Até querias ser piloto de Fórmula 1.
Sim! No Alentejo, em Aljustrel, o meu pai andava entusiasmado com a revolução e tinha um estúpido de um filho, que era eu, que só queria carros e motas, uma coisa completamente burguesa. Ironicamente, eu acabava a ver corridas de carros no centro de trabalho do PCP, era surreal. Na altura, o poder local andava a fazer obras e trabalhos de electrificação, o que nos obrigava a desligar a luz durante as manhãs de domingo. E, nesse período do dia, só havia um sítio em Aljustrel que tinha electricidade, era o centro do PCP, sempre preparado para a clandestinidade, sempre preparado para uma guerra qualquer. O meu pai, não sendo do partido, era lá amigo, então deixavam-me entrar e eu via as corridas de carros no bar do PCP.
E o teu herói era o Niki Lauda.
É raro o gajo que leva a extrema-unção e fica vivo, mas há. O Niki Lauda não só ficou vivo como voltou às corridas. E não só correu como voltou a ganhar corridas e foi campeão do mundo mais duas vezes depois de levar a extrema-unção, é uma coisa incrível.
Não gostavas muito de futebol mas ias ver o clube da terra todos os domingos.
Ia com o meu pai para o antigo campo das Minas, ia ver os jogos do Sport Clube Mineiro Aljustrelense, que ainda é o meu clube. O futebol, para mim, era aquele campo ocre. A primeira vez que vi um relvado fez-me confusão. A televisão era a preto e branco e, quando passava futebol, o campo parecia uma coisa cinzenta. As minhas referências futebolísticas, na altura, eram o Jones, o Ameixa, grandes jogadores, e o Melo, que era guarda-redes. Ele tirava o boné, cabeceava a bola e depois voltava a enterrar o boné na cabeça, virando as costas para a bola. A minha ligação com um clube da televisão só foi possível por causa das motas. Eu passei a ser do Sporting por causa das motas! O Giacomo Agostini era um motociclista que foi campeão do mundo sete vezes, e o nome dele, em termos de sonoridade, era semelhante ao do Joaquim Agostinho, ciclista do Sporting. Ora, foi assim que eu passei a ser do clube, não foi por causa da bola. Eu pensava que o Ajax era o detergente que a gente usava lá em casa…
Nem sequer tinhas jeito para o futebol. Só para futebol nas sarjetas, não era…?
E só em ruas inclinadas. Jogava naquelas sarjetas dos passeios que, normalmente, estão em frente uma da outra, como se fossem duas balizas. Jogávamos um contra um ou dois contra dois. Quem sofria o golo, ia lá apanhar a bola naquelas águas. Era mesmo futebol de sarjeta.
Tinhas oito anos no 25 de Abril. Como viveste esses tempos em Aljustrel?
Ai, era fantástico, havia manifestações todos os dias. No PREC, brincávamos aos antifascistas e aos pides, e não aos índios e "cowboys". Discutíamos muito e depois havia sempre alguém que subia para cima de um monte de entulho, era o nosso palanque, discursava e os outros batiam palmas. A brincadeira era assim. Primeiro caçávamos pides e depois fazíamos discursos. E acabávamos a dizer: viva o 25 de Abril, viva o Marechal António de Spínola, viva o Otelo Saraiva de Carvalho! Eram discursos sobre nada. Sobre coisas parvas. Basicamente, não é muito diferente daquilo que se passa hoje. O que interessa é o som e o tom com que as coisas são ditas. Se passarmos para escrito o que os comentadores dizem, aquilo não dá nada.
Acompanhaste a formação de cooperativas, as ocupações de terras e de casas?
Acompanhei isso tudo. Não percebia nada do que se estava a passar, era uma diversão todos os dias, era uma festa. Mas lembro-me que o meu avô materno, que vivia comigo, não ligava boi ao que estava a acontecer. Foi sempre um gajo céptico, e eu herdei muito dele. O meu avô viveu o 25 de Abril com o entusiasmo de quem está a ver alguém a fazer um tapete de arraiolos ou uma renda de bilros. Nunca teve ilusões. Mas, sim, em Aljustrel, lembro-me de assistir a ocupações de casas, nomeadamente à do administrador da mina, recordo-me do cadeado partido, dos portões, de toda a gente a entrar. A dinâmica das multidões é sempre uma coisa muito complicada.
Estava a lembrar-me do documentário "Torre Bela", do alemão Thomas Harlan…
Lá está, é a dinâmica das multidões. E as revoluções têm estas coisas, têm excessos, há pessoas bem-intencionadas, pessoas menos bem-intencionadas e há pessoas perigosas. Por isso, não consigo olhar para estas coisas sem sentir algum desconforto. Tenho um tio que foi presidente da Câmara de Aljustrel antes do 25 de Abril. Chegou a ser preso depois disso. Ele era médico, e um dia há um tipo que se lembra de dizer que o Dr. Bartolomeu, o meu tio, tinha autopsiado dois gajos supostamente assassinados pela GNR numa revolta mineira – ainda que no relatório da autópsia constasse que se tratava de cartuchos de caçadeiras e não balas militares, ou seja, terá sido um ataque de civis e não de militares. Prenderam o meu tio. O meu pai foi, então, aos arquivos da PIDE desencantar um processo que indicava que, afinal, havia um médico da PIDE que ia fazer autópsias a Beja. O médico que autopsiou os tipos assassinados não tinha sido o meu tio. Foi o meu pai que acabou por tirar o meu tio da prisão depois do 25 de Abril. E, antes do 25 de Abril, foi o meu tio que evitou que o meu pai tivesse ido para a prisão.
Como assim?
O meu pai não era do PCP, mas era de esquerda, era do PS e depois passou para o MDP/CDE. Ele era professor do ensino primário, eu cheguei a ser aluno dele e assisti a uma coisa incrível. Foi em 1971 ou 1972, estávamos nas vésperas de Natal, e um menino pergunta: "Se nos portarmos bem, o menino Jesus traz prendas, não é?" O meu pai responde: "Não. Há meninos que se portam bem e nunca vão ter prendas, porque o mundo é injusto e isso tem de ser mudado." Estruturalmente honesto, ele foi incapaz de mentir ao menino. Era um miúdo muito pobre, filho de um mineiro, o meu pai sabia que ele não iria ter prendas e foi incapaz de mentir. Tenho uma grande admiração pelo meu pai, tem 79 anos, também se chama Luís. Ele, que é muito mais de esquerda do que eu, continua a acreditar que vem aí um homem novo e que a sociedade vai melhorar. Ele sempre foi do contra. E deve-se mesmo ao meu tio o facto de o meu pai não ter sido preso. O meu tio era uma pessoa bondosa, o facto de ser presidente da Câmara antes do 25 de Abril não fazia dele um homem mau, tentou fazer o melhor possível. Acho que este discurso dos bons e dos maus está a regressar e eu não me sinto nada confortável com isso. As coisas estão muito partidas, muito tribalizadas. O Passos Coelho fala e ninguém, da esquerda, o ouve sem preconceitos. À partida, é para abater. O Costa fala e é diabolizado pelos da direita. E as redes sociais pioram tudo. Há malta que tem a tentação de só ver um lado do quadro. Porra, não dá. Eu não conseguiria estar integrado num partido, nem pensar.
O discurso dos bons e dos maus está a regressar, dizes. A polarização.
E a democracia fica em perigo se deixar de existir imprensa de qualidade e reconhecida como marca de informação, em que começamos a desconfiar das notícias. Como eu sou sempre muito desconfiado, vejo sempre de onde é que vem a notícia, quem é que a escreveu, como é que a informação chegou ali, estou sempre muito atento.
Há pouco, dizias que não podias deixar-te enrolar por notícias que não são verdadeiras...
Não sei se agora desconfio mais por já estar de pé atrás ou se antes era mais "naïf"… Penso que os jornais não terão gerido bem a força da internet, tentaram atrair gente com conteúdos gratuitos nos seus sites, as pessoas habituaram-se e, às tantas, deixaram de comprar jornais. A dada altura, a imprensa concluiu que não podia dar tudo, mas já tinha dado demasiado. E hoje as pessoas não estão dispostas a pagar pela informação. Habituaram-nas a isso. Vamos a uma sapataria e pagamos os sapatos, não é? Há coisas que deixaram de ter valor porque começaram a ser dadas entusiasticamente. E isto é perigoso para a democracia.
Reconhecido como "cartoonista", gostas mesmo é de escrever, gostas da palavra, o desenho serve a palavra, como dizes.
Gosto do desenho e tenho prazer nos meus desenhos, mas não tenho prazer naquilo que considero como trabalho mecânico, e tudo o que vai além da ideia do boneco é trabalho mecânico. Eu gosto é da ideia, do momento. Se tivesse um duendezinho que me fizesse os desenhos, seria perfeito.
Tens um teatro de marionetas, como dizes, e depois usas as personagens.
Sim, tenho uma base de personagens que depois são articuladas. É sempre assim com quem faz tiras. Mas é o texto que me dá pica. É a ideia, mais do que o texto. Eu gosto é das ideias!
E de colocá-las em livros. Publicaste "O Comboio das Cinco em 2012" e, agora, "O Quadro da Mulher Sentada a Olhar para o Ar com Cara de Parva e Outras Histórias".
"O Comboio das Cinco" tem origem na personagem que eu tinha que era o Lopes, que passou a repórter pós-moderno. É sobre um professor de Geografia Humana que está perdido no Alentejo, à espera de um comboio. Quando se passa por Baleizão, vê-se uma placa modernaça que diz Estação, e esse foi o clique para a história. Em Serpa, há Estação, mas não há comboio. O meu filho Miguel chega hoje de Lisboa e alguém tem de ir buscá-lo a Beja. A ferrovia, que serviria transportes no século XXI, foi destruída no século XX. Isso é mesmo o ponto de partida do livro "O Comboio das Cinco". Já este novo livro é feito com histórias que têm que ver com o meu imaginário fora da actualidade, é um escape que funciona. Eu vou apontando tudo, escrevo sempre e, entre as minhas coisas, apanhei um grupo de histórias com criaturas anti-sociais, obsessivas, algumas até psicopatas. O livro tem essa unidade. Tenho agora várias coisas pensadas, mas sem objectivo nenhum, a não ser o de ter gozo. Mas sinto-me confortável nesta roupa de "cartoonista", quero continuar a fazer "cartoons", isso é indiscutível, mas há mais vida além disto.